Marília Rodrigues Alves Carminatti
Considerando o atual cenário de constituição de obrigações tributárias, em que o contribuinte assume papel de enorme relevo, cabendo à Administração Pública majoritariamente fiscalizar e instituir sanções tributárias, busca-se analisar criticamente as decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) no sentido de exigir dos contribuintes a apresentação de laudos técnicos quando o Valor da Terra Nua (VTN) declarado na DIAT (Documento de Informação e Apuração do ITR) não corresponder ao VTN previsto no SIPT (Sistema de Preços de Terra).O objetivo desse estudo é demonstrar que são atribuídos aos Administrados diversos deveres, em nome da “praticabilidade” tributária, onerando excessivamente a atividade do particular, em detrimento do dever-poder de fiscalização da Administração. Para cumprir mencionado objetivo, utilizaremos o método hermenêutico-analítico, com o estudo do instituto do lançamento tributário, da legislação de regência do ITR e da jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) sobre o assunto.
Palavras-chave: Lançamento Tributário. ITR. VTN. DIAT. Laudos Técnicos.
Considering the current scenario of the constitution of tax obligations, in which the taxpayer assumes an enormous role, with the Public Administration being mainly responsible for inspecting and instituting tax sanctions, we seek to critically analyze the decisions of the Administrative Council of Tax Appeals (CARF) in requiring taxpayers to submit technical reports when Value of Bare Land (VTN) declared in the DIAT (Information and Calculation Document of the ITR) does not correspond to the VTN provided for in the SIPT (Land Price System). The purpose of this study is to demonstrate that various duties are assigned to the taxpayer, in the name of tax “practicability”, which excessively burdens the activity of the individual, to the detriment of the duty-power of supervision of the Administration. In order to fulfill this objective, we will use the hermeneutical-analytical method, with the study of the tax assessment institute, the legislation governing the ITR and the jurisprudence of the Administrative Council of Tax Appeals (CARF) on the subject.
Key-words: Tax Assessment. ITR. VTN. DIAT. Technical Reports.
O presente artigo busca estabelecer uma visão crítica acerca da jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) no sentido de que, quando o Valor da Terra Nua (VTN) declarado pelo contribuinte no Documento de Informação e Apuração do ITR (DIAT) não corresponder ao valor que consta no Sistema de Informações de Preço de Terra (SIPT), o contribuinte deverá apresentar laudo técnico, que observe as normas da ABNT, para infirmar o valor constante no mencionado sistema.
Parte-se de uma análise do lançamento tributário, sua definição e modalidades. Com base nisso, observa-se o chamado lançamento “por homologação” ou “autolançamento” e o papel de relevo que assumiu nos últimos tempos, mitigando a atividade da Administração Pública.
Com base nessas premissas, passa-se a analisar a jurisprudência do CARF acerca do VTN declarado no DIAT e a necessidade de apresentação de laudos, de modo a criticar o ônus atribuído ao contribuinte para ilidir o valor apresentado pelo Fisco com base no SIPT.
“Lançamento”, como todo signo, é dotado de pluralidade de significações. Não há sequer consonância nos sentidos empregados em seu uso técnico-contábil, sendo que a doutrina e o próprio Código Tributário Nacional utilizam o termo de forma ambígua, ora como processo (determinação do sujeito passivo e apuração do quantum devido), ora como produto (norma individual e concreta posta no sistema pelo “ato” de lançamento).
Assim, lançamento tributário pode representar norma, procedimento ou ato, a depender das premissas adotadas pelo intérprete. Nesse contexto, dentre as diversas concepções existentes, adota-se a proposta pelo professor Paulo de Barros Carvalho, que concebe lançamento como[3]:
Estabelecida a noção de lançamento tributário, passaremos a analisar as modalidades previstas no Código Tributário Nacional.
2.1. MODALIDADES DE LANÇAMENTO SEGUNDO O CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL
Os artigos 147 a 150 do Código Tributário Nacional (CTN) tratam das “modalidades de lançamento”, quais sejam: lançamento de ofício ou direto; lançamento por declaração ou misto e lançamento por homologação.
Tal classificação se baseia no grau de colaboração do administrado para a constituição do lançamento fiscal: quando o administrado não tem qualquer participação, chama-se lançamento de ofício, quando colabora com o Fisco, prestando informações indispensáveis a efetivação do ato administrativo, chama-se lançamento por declaração e, por fim, quando pratica todos os atos necessários ao lançamento, cabendo ao Fisco apenas homologá-los, chama-se lançamento por homologação.
O artigo 150 do CTN cuida desta última modalidade de lançamento, prevendo que cabe ao contribuinte declarar o fato imponível e antecipar o pagamento da quantia que entenda devida; posteriormente, caberá à Administração realizar o ato administrativo homologatório dessa atividade do contribuinte, significa dizer, verificar a legitimidade do ato controlado.
Interessa-nos, para o presente trabalho, o estudo desta modalidade de lançamento, chamada de “autolançamento” ou lançamento por homologação. Vejamos.
2.1.1. INADEQUAÇÃO DO TERMO “AUTOLANÇAMENTO”
Conforme as lições de Alberto Xavier[4], a aplicação do direito pressupõe a existência de um ato jurídico – manifestação de vontade que estabelece a relação entre a norma e o fato – cujos efeitos não se confundem com os efeitos próprios do mandamento da norma a que respeita (é autônomo), devendo ser realizado por sujeito diverso daquele que vivencia a situação (é heterônomo). Ademais, por força da natureza do sujeito a quem incumbe a realização do ato – Administração Pública – possui efeitos de caráter obrigatório e vinculante.
Por outro lado, a adequação ao direito é decorrência do simples ajustamento da conduta do sujeito ao comando legal, de modo que o processo lógico precedente a essa adequação não é relevante para fins jurídicos.
Nesse contexto, o chamado “autolançamento” nada mais é do que o cumprimento espontâneo pelo destinatário dos comandos legais. A operação lógica realizada pelo contribuinte para cumprir a obrigação tributária (verificação do fato tributário e apuração do montante da prestação), ainda que seja semelhante à efetuada pela Administração, não possui importância jurídica. Isso pode ser percebido pela irrelevância das operações intelectuais e volitivas para a validade do pagamento[5].
Ainda que se corporize em documento, a operação lógica realizada pelo contribuinte constitui dever instrumental imposto pela lei para que seja possível o controle da legalidade dos pagamentos efetuados, e não ato jurídico de aplicação da norma tributária[6].
Diante disso, não há que se falar em “autolançamento”, já que a atividade do contribuinte não caracteriza efetivo lançamento tributário. Para Alberto Xavier, existem tributos em que o lançamento deve ocorrer necessariamente antes do pagamento, e outros nos quais o lançamento é eventual[7]. Isso porque entende que a homologação não caracteriza lançamento, na medida em que este pressupõe a exigência de uma prestação tributária; aquela, por sua vez, consiste na constatação da legalidade do pagamento previamente realizado pelo contribuinte. Se inexistir pagamento ou for insuficiente, será realizado lançamento de ofício pelo Fisco; se, contudo, o pagamento for realizado nos termos da lei, não haverá lançamento, mas sim ato administrativo conformativo de sua legalidade, com valor jurídico de quitação – homologação.
Assume que o pagamento antecipado não configura pagamento condicional, cuja eficácia dependeria da posterior homologação. Trata-se de pagamento válido e eficaz desde sua realização, na medida em que extingue a obrigação tributária, por força do art. 156, VII do CTN.
Critica, ainda, a chamada “homologação tácita”, sob argumento de que não há ato jurídico tácito de lançamento. Assevera que o que ocorre é o efeito preclusivo decorrente da inércia da Administração em realizar o controle da legalidade dos deveres realizados pelo contribuinte, com a consequente decadência do direito de lançar eventual crédito tributário[8]. Nesse sentido, conclui Alberto Xavier:
“Em conclusão do que se expôs, verifica-se que nunca há lugar a um verdadeiro lançamento na figura do ‘lançamento por homologação’: não há lançamento no ‘autolançamento’ pretensamente efetuado pelo contribuinte, como pressuposto do pagamento, pois não existe um ato administrativo; não há lançamento na ‘homologação expressa”, pois esta nada exige, apenas confirma a legalidade de um pagamento efetuado, a título de quitação; e não há lançamento na ‘homologação tácita’, que também não é um ato administrativo, mas um simples silêncio ou inércia produtor de efeitos preclusivos.”[9].
No mesmo sentido, Paulo de Barros Carvalho e Estevão Horvath entendem que existem tributos em relação aos quais o lançamento não é necessário. São, inclusive, a maioria dos tributos instituídos nos dias atuais (os chamados impostos indiretos, os sujeitos à retenção na fonte, bem como os sujeitos a lançamento por homologação)[10].
Para Estevão Horvath essa possibilidade decorre da tentativa de conciliar o chamado lançamento por homologação com a previsão de que o ato de lançamento é privativo da autoridade Administrativa (art. 142 do CTN). Entende, portanto, que teria sido mais fácil se o CTN tivesse previsto a existência de tributos para os quais o lançamento é necessário e outros para os quais não é necessário, evitando os conflitos de interpretação existentes na doutrina[11].
Além dos motivos expostos para rechaçar o chamado “autolançamento”, deve-se salientar que tal classificação não se sustenta perante a premissa adotada neste trabalho de que o lançamento constitui ato administrativo, e não procedimento. Na qualidade de ato, não interessa ao lançamento o procedimento que lhe precede, pois não integra seus elementos estruturais.
Assim, levando em consideração que as modalidades de lançamento prescritas no CTN traduzem espécies de procedimentos e não de lançamento – considerado como ato administrativo, o qual pode ou não ser antecedido por algum procedimento – não é correto falar em três espécies de lançamento. A classificação, segundo esse ponto de vista, deveria levar em consideração elementos essenciais ao ato ou seus pressupostos de validade[12].
Outrossim, sendo o ato administrativo de lançamento privativo da autoridade administrativa (art. 142 do CTN), não há como denominar “autolançamento” a atividade realizada pelo contribuinte.
Em suma, o chamado “autolançamento” baseia-se na concepção de que o lançamento tributário é realizado pelo contribuinte nos tributos em que há previsão de pagamento antecipado. Ocorre que, pelos motivos expostos, não se trata de efetivo lançamento tributário. A figura do “autolançamento” ou lançamento por homologação surgiu como alternativa para minimizar os trabalhos do Fisco, conforme veremos no tópico seguinte, e não pode ir de encontro com a essência do instituto do lançamento.
O estudo do lançamento tributário nem sempre esteve no cerne das preocupações da doutrina. Dentre as razões que apontam para esse desinteresse inicial, destaca-se o pequeno relevo que ocupa na vida jurídica cotidiana. Isso porque a participação do contribuinte no cálculo dos tributos que deve pagar vem sendo cada vez mais frequente. Assim, a atividade administrativa que declara os direitos e deveres tributários torna-se menos aparente, sendo mais notada quando há descumprimento da obrigação tributária, confundindo-se com a atividade repressiva de aplicação de sanções fiscais.
Além disso, contribuiu para esse desinteresse a distinção, proveniente da doutrina alemã, entre direito tributário material e formal, conferindo-se maiores esforços no estudo do chamado direito material. Como consequência, o lançamento tributário, alçado à qualidade de direito formal, não despertou a atenção que deveria ter sido dada ao tema pela doutrina.
Ocorre que esse desestímulo ao estudo dos temas do chamado “direito formal” cedeu espaço para um movimento de aproximação entre o direito processual e o direito substancial. Atualmente, o tema lançamento ocupa posição privilegiada na dogmática, sendo rica a produção científica neste domínio.
O estudo do lançamento tributário, a princípio, restringia-se ao esquema de aplicação das normas tributárias pela Administração Pública, responsável por determinar o montante devido à título de tributo em relação a cada fato apto a ser qualificado como jurídico e desencadear obrigações tributárias. Ocorre que, com o passar dos anos, foram aumentando cada vez mais os tributos que não pressupõem a prática do lançamento pela Administração previamente ao pagamento: são os chamados tributos sujeitos a lançamento “por homologação” ou a “autolançamento”.
Dentre os fatores que contribuíram para a crescente “privatização da gestão tributária” (denominação adotada por Ferreiro Lapatza, professor na Espanha, país onde a administração, em regra, não participa do lançamento tributário), destacam-se três, quais sejam: a) elaboração de estruturas normativas mais complexas do ponto de vista estrutural e técnico; b) resultados negativos decorrentes dos procedimentos realizados pela Administração Pública; c) oferecimento de suposta vantagem ao contribuinte, pois irá conhecer seus débitos tributários de maneira antecipada, o que lhe garante segurança em relação a seu patrimônio.
Pode-se considerar como contribuição para esse cenário, ainda, o aumento do número de contribuintes, associado a seletividade dos lançamentos (passaram a ser cada vez mais individualizados), o que resultou na impossibilidade de a Administração realizar o lançamento tributário sem o auxílio do contribuinte. Além disso, mencione-se a influência do princípio da praticabilidade, segundo o qual a execução das leis deve se dar da maneira mais simples, proporcionando-se maior economia e viabilidade ao lançamento tributário[13].
Trata-se, portanto, de adaptação às vicissitudes sociais, a qual amplia os chamados “deveres públicos de prestação”, os quais decorrem do poder de império do Estado, devendo-se ressaltar, contudo, a necessidade de observância aos princípios do Estado de Direito.
Assim, não dispondo o Código Tributário Nacional qual deve ser a modalidade de lançamento de cada imposto, cabe à lei ordinária estabelecê-la. Como consequência, em vista da busca por rapidez e economia para as atividades de arrecadação e fiscalização, são numerosos os tributos sujeitos a lançamento “por homologação”, de modo que a Administração assume uma função muito mais de controle dos atos realizados pelo contribuinte, com caráter predominantemente sancionatório.
Diante disso, o papel da Administração Pública deixa de ser necessário e insuprível, passando a ser eventual, já que não é exercido em relação a todos os casos que o legitimam. Isso porque, na maioria das situações, apenas há a atuação do contribuinte na apuração do tributo devido, sendo que a Administração não atua no prazo que lhe é dado para efetuar o ato de lançamento.
Ademais, acentuando o papel de mero controle da Administração, generalizou-se o sistema de retenção na fonte, no qual a responsabilidade pela retenção do tributo é deslocada para terceiros, não contribuintes[14].
Sobre o assunto, discorre Alberto Xavier:
“Ora – prossegue Saldanha Sanches – nos sistemas fiscais modernos o “ato tributário” [lançamento] raramente desempenha o papel que lhe fora outrora atribuído, pois a obrigação tributária via de regra nasce e morre sem qualquer intervenção expressa da Administração. O “ato tributário”, quando existe, deixa de desempenhar a função de ato finalizador de um procedimento administrativo, sem cuja verificação não pode existir um dever de prestar, passando a desempenhar a função excepcional de intervenção sancionatária destinada a corrigir um ilícito. O ato tributário fica assim relevado a uma ‘função supletiva em relação à produção dos efeitos que em princípio caberiam aos comportamentos declarativos dos privados’.”[15]
Assim, diante da enorme delegação de funções administrativas aos particulares, fala-se em “privatização da Administração Fiscal” e em “procedimento de massa” para referir-se ao atual cenário do lançamento tributário.
Por fim, cabe ressaltar que, como resultado dessa “privatização da Administração Fiscal”, aumentou-se substancialmente a responsabilidade do contribuinte e, em contrapartida, diminui-se a responsabilidade do Fisco. É o que passaremos a analisar para, em seguida, tratarmos do abuso cometido em relação ao dever de declaração do valor da terra nua (VTN) pelo contribuinte.
3.1. AUMENTO DA RESPONSABILIDADE ATRIBUÍDA AO CONTRIBUINTE
Conforme mencionado no tópico acima, constitui função administrativa a fiscalização, arrecadação e cobrança de tributos, de modo que deve ser desempenhada unicamente pela Administração Pública. Não obstante, tal atividade é amplamente atribuída aos particulares, já que a Administração se vê impossibilitada de realizar sozinha tal mister.
Este fenômeno faz com que a tarefa administrativa se restrinja a investigar, reprimir e sancionar os comportamentos que não se conformem com as normas aplicáveis.
Inicialmente, foi atribuído ao contribuinte o papel de declarar os fatos devido ao aumento dos fatos imponíveis existentes na complexa sociedade moderna. Assim, a responsabilidade do contribuinte era restrita a descrever os fatos, cabendo à Administração verificá-los e aplicar as normas jurídicas correspondentes. Posteriormente, foi atribuída também a atividade de cálculo do valor devido à título de tributo. A partir desse momento, a responsabilidade do contribuinte foi substancialmente elevada, sujeitando-se aos riscos da apuração de forma equívoca.
Para Estevão Horvath, o lançamento não deve ser necessariamente tarefa administrativa, de modo que assevera que apenas em um Estado ideal caberia exclusivamente à Administração lançar os tributos. Ressalta, no entanto, que é dever da Administração fornecer aos contribuintes respaldos para que cumpram com seus deveres, os quais visam o interesse geral[16].
O que se observa, no entanto, é que diante do complexo sistema jurídico tributário e da falta de subsídios fornecidos pela Administração, o contribuinte corre elevado risco de sofrer autuações tributárias, já que, em geral, não tem conhecimento da maneira como deverá adimplir suas obrigações fiscais.
Nesse contexto, deve-se mencionar que são legitimadas situações prejudiciais ao contribuinte, como as decorrentes do reconhecimento pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça de que a declaração constitui o crédito tributário[17], quais sejam: a) a possibilidade de inscrição em dívida ativa imediatamente, sem a necessidade de qualquer procedimento prévio do Fisco[18]; b) o afastamento da possibilidade de denúncia espontânea para tributos declarados e não pagos;[19] c) a não aplicação do instituto da decadência[20]; e d) o termo inicial para contagem do prazo prescricional como sendo a data da declaração, nos casos de tributo declarado e não pago ou pago parcialmente[21].
Nota-se, portanto, o contexto de enorme insegurança vivenciado pelos sujeitos passivos das obrigações tributárias, o qual é substancialmente agravado pela atual sistemática, na qual as responsabilidades do contribuinte são desproporcionais aos subsídios que lhes são fornecidos.
É nesse contexto que analisaremos o dever atribuído ao contribuinte de declaração do valor da terra nua de seu imóvel rural e, ainda, de apresentação de laudo técnico para comprovação do valor declarado.
De acordo com o art. 10 da Lei n° 9.393/96, o ITR caracteriza tributo sujeito a lançamento “por homologação”, de modo que o VTN (valor da terra nua) declarado pelo contribuinte no DIAT (Documento de Informação e Apuração do ITR) é considerado auto-avaliação. Esse valor, contudo, poderá ser desconsiderado pela Receita Federal quando for demonstrada a subavaliação ou prestação de informações inexatas, incorretas ou fraudulentas (art. 14 da Lei n° 9.393/96), situação em que a Secretaria da Receita Federal procederá ao lançamento de ofício, com base nas informações sobre preços de terras disponibilizadas no SIPT (Sistema de Preços de Terra) e nos dados da área total, área tributável e grau de utilização do imóvel apurados em procedimento fiscalizatório.
No mesmo sentido, os artigos 15, 16, caput, §§2° e 3° e 17, I, da Lei n° 9.393/96, estabelecem normas acerca do poder fiscalizatório da Receita Federal no âmbito do ITR, com a possibilidade de contar com o apoio do INCRA e, ainda, de delegar a outros órgãos da administração tributária das unidades federadas as atividades de cobrança e lançamento do ITR.
Deve-se ressaltar que o SIPT, criado pela Portaria n° 447/02 da Secretaria da Receita Federal, tem a função de orientar a Administração Pública na fixação do VTN, sendo alimentado pela Receita Federal e por órgãos competentes de Municípios conveniados, para facilitar a função fiscalizatória. Possui, portanto, caráter informativo, não vinculante, mesmo porque devem ser consideradas as características individuais de cada imóvel, as quais podem acarretar mudanças significativas no VTN.
Sendo assim, o valor do VTN que consta no SIPT não pode ser considerado absoluto, uma vez que a propriedade rural pode ter peculiaridades ou, ainda, a avaliação lançada no SIPT pode ter sido realizada de forma superficial ou com base em parâmetros que não se coadunam com a realidade do mercado. Nesse sentido, o professor Manuel Eduardo Cruvinel Machado Borges trata das possíveis distorções no VTN constante no SIPT, apontando a sede de arrecadação como uma das causas para tanto:
“Nesse contexto, dentre os motivos que levam à distância significativa entre valores do SIPT e preços médios de mercado, encontra-se o fato de os procedimentos conduzidos pelos agentes municipais para determinação dos valores deixar de observar a melhor técnica e critérios de avaliação e de permitir a adequada participação dos contribuintes. Ademais, pesa reconhecer que, infelizmente, a sanha arrecadatória é colocada em primeiro plano e também coopera para uma pauta de valores além da realidade, pois leva os servidores a incluir no SIPT a avaliação máxima possível, mesmo que esta se afaste do razoável e do efetivamente praticado nas operações de compra e venda de imóveis rurais, transgredindo o que preconiza a norma determinante da base de cálculo do imposto.”[22]
Estabelecido esse panorama, interessa ao presente estudo o entendimento firmado pela jurisprudência do CARF no sentido de que é necessária a apresentação de laudos técnicos de avaliação, elaborados por engenheiro agrônomo ou florestal, que observem as normas da ABNT, com grau de fundamentação mínimo II, para comprovar que o valor da terra nua (VTN) não corresponde ao constante no Sistema de Preços de Terra (SIPT)[23]. A Administração Pública se desincumbe do ônus de fiscalizar a atividade realizada pelo contribuinte e lhe impõe o dever de contratar profissional habilitado a apresentar laudo técnico.
Em outras palavras, quando o contribuinte declara na DIAT VTN inferior ao que consta no SIPT, o Fisco lavra auto de infração no qual considera como correto o valor previsto no SIPT. Nessas situações, o CARF adota o entendimento de que o valor considerado na autuação somente pode ser ilidido mediante apresentação de laudo técnico que comprove que o VTN declarado pelo contribuinte está correto. É dizer, não basta que o contribuinte apresente os documentos que embasaram o valor declarado à título de VTN, pois a Corte Administrativa entende que apenas laudo técnico é capaz de infirmar o valor constante no SIPT, adotado pelo Fisco.
Apesar de reconhecer que o ITR configura tributo sujeito a lançamento “por homologação” e que é dever da Administração fiscalizar a atividade realizada pelo contribuinte, a Corte Administrativa conclui pela atribuição do ônus probatório ao próprio contribuinte, conforme se observa no julgado abaixo:
“Como se sabe, o ITR é uma modalidade de tributo por homologação, razão pela qual é dever da fiscalização verificar todas as informações tributariamente relevantes declaradas pelos contribuintes. É por este motivo que o Decreto nº 4.449/2002 determina que a comprovação da efetiva existência das áreas isentas indicadas na DITR deverá ser realizada através de Laudo emitido por profissional habilitado acompanhado da respectiva Anotação de Responsabilidade Técnica. É o que se depreende dos termos do art. 9º do Decreto nº 4.449/2002 […]”[24]
Nota-se que a premissa adotada não condiz com a conclusão: se é dever da Administração verificar as informações declaradas pelo contribuinte, a prova de que o valor da terra nua declarado está incorreto deveria ser realizada pela própria Administração, com base na documentação apresentada pelo contribuinte.
O lançamento “por homologação”, por si só, já atribui diversos deveres instrumentais ao contribuinte, mitigando o trabalho de fiscalização e arrecadação do Fisco. A exigência de que o contribuinte contrate laudo técnico para demonstrar que o valor declarado está “correto” ultrapassa os limites da razoabilidade e representa transferência de toda a tarefa de fiscalização ao contribuinte, é dizer, a total “privatização da administração fiscal”.
É importante observar, ainda, que não há na legislação norma que atribua o dever de apresentação de laudo técnico. Nesse sentido, se não é obrigatório realizar essa conduta, o contribuinte está permitido a não realizá-la(-Op ≡ P-p[25]): trata-se da lógica da interdefinibilidade dos modais deônticos[26].
A avaliação do contribuinte deveria ser levada em consideração, independentemente da apresentação de laudo técnico, uma vez que as características específicas do imóvel rural são determinantes para a apuração do VTN. O ônus financeiro experimentado pelo contribuinte para contratar laudo técnico e se defender de autuação fiscal realizada quando verificado incompatibilidade entre o VTN declarado e o VTN que consta no SIPT torna ainda mais dispendioso o cumprimento das obrigações tributárias.
Em suma, é notório o descabimento da exigência de apresentação de laudos de avaliação para comprovar os valores das terras, uma vez que cabe à União ou Municípios o procedimento de fiscalização e o SIPT não pode ser considerado como vinculante. A não homologação do valor declarado e pago pelo contribuinte não pode ser alicerçada na exigência de apresentação de laudos, mas sim em provas cabais dos elementos que levaram à atribuição de determinado VTN ao imóvel rural.
Diante do exposto, é possível concluir que o papel atribuído ao contribuinte no procedimento que precede o ato administrativo de lançamento visa facilitar a atividade de arrecadação, em nome da “praticabilidade” tributária.
Nesse sentido, o aumento da instituição de tributos sujeitos ao lançamento “por homologação” acarreta a chamada “privatização da administração fiscal”. Por conseguinte, a Administração Pública acaba ficando responsável, na maioria dos casos, apenas pela fiscalização da atividade do particular e pela imposição de sanções tributárias.
Contudo, não é razoável e não encontra amparo legal a exigência de que o contribuinte apresente laudo técnico e, ainda, que esse laudo observe as normas da ABNT, para infirmar o VTN registrado no SIPT. A uma porque esse sistema não possui caráter vinculante; a duas porque se trata de abuso na imposição de deveres aos administrados em detrimento do dever-poder de fiscalização da Administração Pública.
BORGES, Manuel Eduardo Cruvinel Machado. ITR e o SIPT –Sistema de Preço de Terras: aspectos legais e limites. In.: ANAN JR., Pedro e PEIXOTO, Marcelo Magalhães (coord.). Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural à luz da jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – vol. 2. São Paulo: MP Editora.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 31ª ed. São Paulo: Saraiva, 2021.
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[1]Publicado emRevista De Direito Tributário Contemporâneo, v. 1, p. 311-326, 2022.
[2] Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Advogada e Professora. Endereço eletrônico: mariliabezzan@gmail.com.
[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 31 ª ed. São Paulo: Noeses, 2021, p. 424/434.
[4]XAVIER, Alberto. Do Lançamento no Direito Tributário Brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 78/80.
[5] XAVIER, Alberto. Do Lançamento no Direito Tributário Brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 80/82.
[6]Ibid., p. 82/83.
[7] Para Alberto Xavier, é possível que não haja lançamento, já que o lançamento depende da verificação de que a prestação tributária realizada pelo contribuinte não está de acordo com a lei. Diversa, no entanto, é a posição de Souto Maior Borges, para quem o lançamento existe mesmo nos tributos sem lançamento anterior ao pagamento, consistindo na homologação da atividade do particular.
[8]XAVIER, Alberto. Do Lançamento no Direito Tributário Brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 86/91.
[9]Ibid., p. 91.
[10] HORVATH, Estevão. Lançamento Tributário e “Autolançamento”. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 161/164.
[11] HORVATH, Estevão. Lançamento Tributário e sua Imprescindibilidade. In.: Direito Tributário – Homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 600/602.
[12] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 31ª ed. São Paulo: Noeses, 2021, p.459/461.
[13] HORVATH, Estevão. Lançamento Tributário e “Autolançamento”. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 64/68.
[14] XAVIER, Alberto. Do Lançamento no Direito Tributário Brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 3/15.
[15]Ibid., p. 12/13. Alberto Xavier salienta, no entanto, que não concorda com a alegação de Saldanha Sanches de que há um “declínio do ato tributário”. Acredita, de modo diverso, que o lançamento ganha relevância na atual sistemática, na medida em que é praticado majoritariamente com a função de fiscalização e controle, em decorrência da qual podem ser aplicadas sanções fiscais. Traduz, portanto, ato administrativo que possui potencial para restringir a propriedade e a liberdade dos cidadãos, o que demonstra sua inegável relevância.
[16]HORVATH, Estevão. Lançamento Tributário e “Autolançamento”. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 102/110.
[17] XAVIER, Alberto. O Conceito de Autolançamento e a Recente Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. In.: Direito Tributário – Homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 561/573.
[18] REsp 752.787/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/02/2006, DJ 06/03/2006 e EREsp 576.661/RS, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 27/09/2006, DJ 16/10/2006.
[19]AgRg nos EREsp 638.069/SC, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/05/2005, DJ 13/06/2005 e AgRg no EREsp n° 509.950, 1ª Seção, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, DJ de 13.06.2005.
[20] REsp 500.191/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/06/2003, DJ 23/06/2003 e REsp 567.737/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/11/2006, DJ 04/12/2006.
[21] REsp 673.585/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 26/04/2006, DJ 05/06/2006 e AgRg no AgRg no REsp 975.073/RS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/11/2007, DJ 07/12/2007.
[22]BORGES, Manuel Eduardo Cruvinel Machado. ITR e o SIPT –Sistema de Preço de Terras: aspectos legais e limites. In.: ANAN JR., Pedro e PEIXOTO, Marcelo Magalhães (coord.). Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural à luz da jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – vol. 2. São Paulo: MP Editora, p. 283.
[23]Acórdão n° 2201-008.937; 2ª Seção de Julgamento / 2ª Câmara / 1ª Turma Ordinária; relator Conselheiro Carlos Alberto do Amaral Azeredo; julgado em 14/07/2021; Acórdão n° 2202-008.167; 2ª Seção de Julgamento / 2ª Câmara / 2ª Turma Ordinária; relator Conselheiro Martin da Silva Gesto; julgado em 11/05/2021 e Acórdão n° 2201-008.705; 2ª Seção de Julgamento; 2ª Câmara; 1ª Turma Ordinária; presidente redator Carlos Alberto do Amaral Azeredo; julgado em 07/04/2021.
[24] Acórdão n° 2201-008.841; 2ª Seção de Julgamento / 2ª Câmara / 1ª Turma Ordinária; relator Conselheiro Francisco Nogueira Guarita; julgado em 09/06/2021.
[25]Explicando: afirmar que não é obrigatório (negação “-“ do modal deôntico obrigatório “O”) realizar uma determinada conduta “p” é equivalente (≡) a afirmar que é permitido (modal deôntico “P”) não (negação “-“) realizar determinada conduta “p”. Significa dizer, o modal deôntico “obrigatório” (O) pode ser definido pelo operador deôntico “permitido” (P) associado a uma negação (“-“).
[26]ECHAVE, Delia Tereza; URQUIJO, María Eugenia; GUIBOURG, Ricardo. Lógica proposición y norma. Buenos Aires: Astrea, 1991, p. 123/124.