Paulo de Barros Carvalho
Introdução. 1. A construção de sentido realizada a partir do conjunto de enunciados integrantes do sistema jurídico. 2. Os princípios jurídicos e a compreensão do direito. 2.1. A certeza do direito e outros valores que se compõem para realizar o sobre princípio da segurança jurídica. 2.2. O princípio da irretroatividade das leis tributárias. 3. O art. 106, I do Código Tributário Nacional e a retroatividade da lei interpretativa. 3.1. Requisitos para uma lei interpretativa. 3.2. A questão da retroatividade das “leis interpretativas. 4. Norma interpretativa e a Lei Complementar nº 118/2005. 4.1. Extinção da obrigação tributária na hipótese de tributo sujeito ao “lançamento por homologação”. 4.2. O instituto da decadência no direito tributário brasileiro e a caducidade do direito à restituição de tributo pago indevidamente. 4.3. Prazo para o exercício do direito à repetição do indébito tributário perante à Administração Pública. 5. Leis interpretativas, segurança jurídica e irretroatividade: inaplicabilidade do disposto no art. 106, I do Código Tributário Nacional ao art. 3º da Lei Complementar nº 118/2005. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
Qualquer trabalho que pretenda assumir foros de seriedade científica há de pressupor uma linha diretiva, um fio condutor que esteja apto para demonstrar, a cada instante, o grau de desenvolvimento do raciocínio, o processo de elaboração das variadas ideias e o esquema de concatenação que o autor julgou apropriado para governar a pesquisa, organizar as conclusões e apresentar os resultados.
De fato, a referência ao método é de substancial interesse ao leitor, pois facilita o acompanhamento seguro dos conceitos expostos, sobre permitir, àquele que lê, a possibilidade de aferir a consistência do raciocínio e a coerência do discurso. Sem a adoção de um plano metodológico definido e conveniente ao arranjo descritivo, o esforço poderia significar a somatória de informações e de dados, que diriam sobre o assunto sem tocar-lhe a índole; esclareceriam a matéria, sem apreender-lhe a natureza. A declaração antecipada dos caminhos que serão percorridos tem o condão de favorecer o entendimento das ideias que se entrelaçam.
O direito positivo em vigor no Brasil será tomado como um corpo de linguagem prescritiva que se dirige à região material da conduta humana, nas suas relações de intersubjetividade. Não quer isso dizer que o direito se reduz à linguagem. Significa, simplesmente, que dentro da pluridimensionalidade com que se apresenta o fenômeno jurídico, faz-se a opção pelo segmento linguístico, como algo inerente e indissociável a toda e qualquer manifestação do direito. Se é procedente a proposição afirmativa segundo a qual onde houver direito haverá sempre normas jurídicas, não menos verdade será que, ali onde estiverem presentes regras de direito existirá, necessariamente, uma linguagem que as constitua. E é pelo factum da linguagem que o presente estudo se pautará para que o direito possa ser então observado e conhecido na sua intimidade estrutural.
Desde logo, assente-se que a linguagem do legislador é livre, descomprometida, natural, penetrada, em certa porção, por termos e locuções científicas. Nem poderia ser diferente. Os membros das Casas Legislativas, em países que se inclinam por um sistema democrático de governo, representam os vários setores da sociedade. Tanto mais autêntica será a representação do Parlamento, quanto maior for a presença, na composição de seus quadros, das inúmeras parcelas da comunidade social.
Se, de um lado cabe deplorar produção legislativa tão desordenada, por outro sobressai, com enorme intensidade, o labor científico do jurista, que nesse momento aparece como a única pessoa credenciada a construir os possíveis conteúdos semânticos do texto legislado. Enquanto é lícito afirmar-se que o legislador se exprime em linguagem livre, natural, pontilhada, aqui e ali, de símbolos científicos, o mesmo não se passa com o discurso do cientista do direito. Sua linguagem não se apresenta apenas técnica, mas científica, sobretudo porque as proposições descritivas que emite vêm carregadas da harmonia dos sistemas teoréticos, com as múltiplas unidades do conjunto arrumadas e escalonadas segundo critérios que observam, estritamente, os princípios lógicos da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído, além das outras leis formais do pensamento, explicitadas pela Lógica Clássica.
Em suma, qualquer estudo que almeje qualificar-se como jurídico-científico precisa tomar como eixo temático a análise de preceitos constitucionais e infraconstitucionais, examinando-os consciente de que o direito positivo consiste em uma unidade indecomponível, mantida por suas relações internas de coordenação e de subordinação (hierarquia).
Essas são as premissas que direcionam a compreensão do disposto no art. 106, I, do Código Tributário Nacional, em cotejo com o princípio da irretroatividade tributária, inscrito no art. 150, III, “a”, da Constituição, e com o sobre princípio da segurança jurídica.
Trata-se de temática de extrema relevância e que voltou ao centro dos debates quando da alteração legislativa implementada pela Lei Complementar nº 118/2005, prescrevendo, no art. 3º, que:
“Para efeito da interpretação do inciso I do art. 168 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o § 1º do art. 150 da referida Lei”.
Em face de tal preceito, firmou-se importante precedente jurisprudencial, em julgados de lavra do Ministro Teori Albino Zavascki, a respeito dos requisitos para que se tenha caracterizada uma lei interpretativa, bem como dos efeitos irradiados pelo art. 3o da Lei Complementar nº 118/2005. Eis o foco temático deste estudo.
O procedimento de quem se põe diante do direito com pretensões cognoscitivas há de ser orientado pela compreensão dos textos prescritivos. A partir do (i) contato com a literalidade textual, vale dizer, com o plano dos significantes ou com o chamado plano da expressão, ali onde estão as estruturas morfológicas e gramaticais, (ii) o intérprete constrói os conteúdos significativos e (iii) ordena-os na forma estrutural de normas jurídicas, (iv) articulando essas entidades para formar um domínio. O direito abriga sempre esses quatro planos: o das formulações literais, o de suas significações enquanto enunciados prescritivos, o das normas jurídicas, como unidades de sentido obtidas mediante o grupamento de significações que obedecem a determinado esquema formal (implicação) e, por fim, o sistema jurídico construído a partir da organização vertical e horizontal das regras de direito positivo, cabendo ao intérprete construir as normas a partir do estrato de linguagem que lhe é oferecido.
A norma jurídica é juízo implicacional construído pelo intérprete em função da experiência no trato com esses suportes comunicacionais. Por isso, não há que se confundir norma, como complexo de significações enunciativas, unificadas em forma lógica determinada (estrutura implicacional) e a expressão literal desses enunciados, ou mesmo os conteúdos de sentido que tais enunciados apresentem, quando isoladamente considerados. O plano dos significantes (plano de expressão) é o veículo que manifesta, graficamente (no direito escrito), a mensagem expedida pelo autor. Na sua implexa totalidade, constitui o sistema morfológico e gramatical do direito posto, conjunto de frases prescritivas introduzidas por fatos jurídicos que a ordenação positiva para tanto credencia.
Com propósitos analíticos, entretanto, podemos isolar frase por frase, enunciado por enunciado, compondo um domínio de significações, antes de agrupar os conteúdos segundo fórmulas moleculares caracterizadas pelo conectivo implicacional. Nesse momento intermediário, estaremos diante daquilo que poderíamos chamar de sistema de significações proposicionais. Agora, num patamar mais elevado de elaboração, juntaremos significações, algumas no tópico de antecedente, outras no lugar sintático de consequente, tudo para constituir as entidades mínimas e irredutíveis (com o perdão do pleonasmo) de manifestação do deôntico, com sentido completo, uma vez que as frases prescritivas, insularmente tomadas, são também portadoras de sentido. Formaremos, desse modo, as unidades normativas, regras ou normas jurídicas que, articuladas em relações de coordenação e de subordinação, acabarão compondo a forma superior do sistema normativo.
Colhemos o ensejo para reiterar que todos os sistemas a que nos referimos são constitutivos do texto, entendida a palavra na sua mais ampla dimensão semântica. Nunca é demais insistir que as subdivisões em sistemas respondem a cortes metódicos que os objetivos da investigação analítica impõem ao espírito do pesquisador.
A proposição que dá forma à norma jurídica, ensina Lourival Vilanova[3], é uma estrutura lógica:
“Estrutura sintático-gramatical é a sentença ou oração, modo expressional frástico (de frase) da síntese conceptual que é a norma. A norma não é a oralidade ou a escritura da linguagem, nem é o ato de querer ou pensar ocorrente no sujeito emitente da norma, ou no sujeito receptor da norma, nem é tampouco a situação objetiva que ela denota. A norma jurídica é uma estrutura lógico-sintática de significação.
Com efeito, a norma jurídica é uma estrutura categorial construída, epistemologicamente, pelo intérprete, a partir das significações que a leitura do texto do direito positivo desperta em seu espírito. É por isso que, quase sempre, não coincidem com os sentidos imediatos dos enunciados em que o legislador distribui a matéria no corpo físico da lei. Advém daí que, na maioria das vezes, a leitura de um único artigo será insuficiente para a compreensão da regra jurídica. E quando isso acontece o exegeta se vê na contingência de consultar outros preceitos do mesmo diploma e, até, a sair dele, fazendo incursões pelo sistema.
Conceituar importa selecionar caracteres, escolher traços, separar aspectos, desprezando os demais. As singularidades irrelevantes são deixadas de lado pelo legislador, mesmo porque são em tal quantidade que o trabalho ganharia proporções infinitas. E surge o conceito, após a aplicação do critério seletivo que o legislador adotou, critério esse que nada mais é que um juízo de valor expedido em consonância com sua ideologia, tomada a palavra, neste ensejo, como pauta de valores, tábua de referências axiológicas.
Toda vez que houver acordo, ou que um número expressivo de pessoas reconhecerem que a norma “N” conduz a um vetor axiológico forte, cumprindo papel de relevo para a compreensão de segmentos importantes do sistema de proposições prescritivas, estaremos diante de um princípio. Princípio é uma regra portadora de núcleos significativos de grande magnitude, influenciando visivelmente a orientação de cadeias normativas, às quais outorga caráter de unidade relativa, servindo de fator de agregação para outras regras do sistema do direito positivo.
2.1. A certeza do direito e outros valores que se compõem para realizar o sobreprincípio da segurança jurídica
O princípio da certeza do direito experimenta uma dualidade de sentido que não pode ser ignorada: (i) exprime a circunstância de que o comando jurídico, atuando numa das três modalidades do deôntico (proibido, permitido e obrigatório), requer, com assomos de necessidade absoluta, que a conduta regrada esteja rigorosamente especificada (alguém, estando obrigado, tendo a permissão ou estando proibido, deve saber, especificamente, qual a conduta que lhe foi imputada, comportamento esse que não se compadece com a dúvida, com a inexatidão, com a incerteza); (ii) ao mesmo tempo, certeza do direito significa previsibilidade, isto é, o administrado tem o direito de saber, com antecedência, qual o conteúdo e alcance dos preceitos que lhe serão imputados, para que possa programar-se, tomando iniciativas e dirigindo suas atividades consoante a orientação que lhe advenha da legislação vigente. É aquilo que alguns preferem chamar de princípio da não-surpresa.
Mas, ao lado da certeza, em qualquer das duas dimensões de significado, outros valores constitucionais, explícitos e implícitos, operam para concretizar o sobrevalor da segurança jurídica. Diremos que em um sistema dado existe este sobreprincípio, pairando sobre a relação entre Fisco e contribuinte, sempre que nos depararmos com um feixe de estimativas, integradas para garantir o desempenho da atividade jurídico-tributária pelo Estado-Administração. Convencionou-se que tais valores são, basicamente, a igualdade, a legalidade e a legalidade estrita, a universalidade da jurisdição, a vedação do emprego do tributo com efeitos confiscatórios, a irretroatividade e a anterioridade, ao lado do princípio que consagra o direito à ampla defesa e o devido processo legal.
Qualquer violação a essas diretrizes supremas compromete, irremediavelmente, a realização do princípio implícito da certeza, como previsibilidade, e, ainda, o grande postulado, também inexpresso, da segurança jurídica.
2.2. O princípio da irretroatividade das leis tributárias
Entre as limitações do poder de tributar inscreveu o constituinte de 1988 o princípio da irretroatividade (art. 150, III, “a”). Por certo que a prescrição é despicienda, visto que a diretriz contida no art. 5º, XXXVI, da Constituição da República, é portadora desse mesmo conteúdo axiológico, irradiando-se por todo o universo do direito positivo, incluindo, portanto, a região das imposições tributárias. O simples vedar que a lei não prejudique o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, seria o bastante para obstar qualquer incursão do legislador dos tributos pelo segmento dos fatos sociais que, por se terem constituído cronologicamente antes da edição legal, ficariam a salvo de novas obrigações. Qual o motivo do zelo constitucional? Sabemos que o legislador das normas gerais e abstratas, a começar por aquelas fundantes da ordem jurídica, comete seus desassisos, seja pela ausência de regras disciplinadoras – anomia –, seja pela ponência de normas contrárias e contraditórias, seja ainda pela impressão, juridicamente falsa, mas aparentemente útil, de que prescrevendo a mesma coisa duas ou mais vezes, outorgará a eficácia que a regra não logrou alcançar na formulação singular. Se em termos dogmáticos representa um ledo engano, nada modificando no panorama concreto da regulação das condutas, pelo ângulo histórico ou sociológico encontra-se a explicação do fato.
Com efeito, o enunciado normativo que protege o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, conhecido como princípio da irretroatividade das leis, não vinha sendo, é bom que se reconheça, impedimento suficientemente forte para obstar certas iniciativas de entidades tributantes, em especial a União, no sentido de atingir fatos passados, já consumados no tempo, debaixo de plexos normativos segundo os quais os administrados orientaram a direção de seus negócios. Isso marcou decisivamente o meio jurídico e, na primeira oportunidade, que ocorreu com a instalação da Assembleia Nacional Constituinte, fez empenho em consignar outra prescrição explícita, dirigida rigorosamente para o território das pretensões tributárias, surgindo, então, o princípio de que falamos.
Como expressão do imperativo da segurança do direito, as normas jurídicas voltam-se para a frente, para o porvir, para o futuro, obviamente depois de oferecido ao conhecimento dos administrados seu inteiro teor, o que se dá pela publicação do texto legal. Na linha de realização desse valor supremo, estatui a Carta Magna que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Fere a consciência jurídica das nações civilizadas a ideia de que a lei possa colher fatos pretéritos, já consolidados e cujos efeitos se canalizaram regularmente em consonância com as diretrizes da ordem institucional.
Há ocasiões, entretanto, em que se concede ao legislador a possibilidade de atribuir às leis sentido retroativo. O Código Tributário Nacional discorre sobre o assunto, ao cristalizar, no art. 106 e seus incisos, as hipóteses em que a lei se aplica a fato pretérito.
Interessa-nos, nesta oportunidade, o teor do inciso I, que alude às chamadas leis interpretativas. Segundo tal dispositivo, assumindo a lei expressamente esse caráter, pode ser aplicada a fatos passados, excluindo-se a aplicação de penalidades à infração dos dispositivos interpretados.
As leis interpretativas exibem um traço bem peculiar, na medida em que não visam à criação de novas regras de conduta para a sociedade, circunscrevendo seus objetivos ao esclarecimento de dúvidas levantadas em razão da dubiedade dos vocábulos linguísticos constantes da lei interpretada. Encaradas sob esse ângulo, despem-se da natureza inovadora que acompanha a atividade legislativa, retrotraindo ao início da vigência da lei interpretada, explicando com fórmulas elucidativas sua mensagem antes obscura.
3.1. Requisitos para uma lei “interpretativa”
As leis tributárias ditas interpretativas, assim como qualquer outra lei que pretensamente assuma esse caráter, devem ser examinadas com particular cautela. Não pode o legislador, sob o pretexto de esclarecer pontos obscuros de uma lei ou de revelar seu verdadeiro sentido, utilizar-se de outros diplomas, supostamente interpretativos, para estabelecer aos destinatários os rigores de uma retroatividade ilimitada.
Inicialmente, cumpre distinguir lei interpretativa de lei inovadora. As leis interpretativas, como já anotei, circunscrevem seus objetivos ao esclarecimento de dúvidas. A quase totalidade das legislações, todavia, mostra-se inovadora, introduzindo alterações nas regras prescritivas de condutas. A dificuldade de se produzir norma que nada altere no ordenamento é tão acentuada que torna quase impossível identificar-se preceito exclusivamente interpretativo, significando mera declaração do sentido e alcance de dispositivo já existente.
Examinando o rol de possíveis alterações legislativas, para, a partir delas, identificar os caracteres da lei interpretativa, assevera Nuno Sá Gomes[4] serem inovadoras as normas revogatórias, pois a extinção de um regime jurídico conduz à aplicação da regra geral ou reconduz as relações que deixaram de ser reguladas, à esfera da liberdade. Implicam alteração no ordenamento até mesmo as leis novas que veiculem regras idênticas às antes existentes, na medida em que, sendo a lei nova informada por outros princípios e tendo diverso enquadramento sistemático, haverá sentido necessariamente inovador, devendo lembrar-se que a occasio legis, a razão de ser imediata da nova lei, é também diferente, sendo outra, por igual, a atividade da enunciação de que decorre. São também inovadoras as leis novas que, em face de uma interpretação uniforme a pacífica, atribuem sentido diferente à lei antiga ou, ainda, que, embora sendo controvertida a interpretação daquela, orientam a adoção de uma solução inteiramente nova, que exorbita da controvérsia sobre o respectivo sentido.
Tem-se por interpretativas apenas as leis que objetivem fixar a significação de norma jurídica que suscite dúvidas no seu sentido e alcance ou que possa vir a suscitá-las. Apresenta-se como pressuposto da lei interpretativa, portanto, a existência de incerteza sobre o significado normativo do preceito interpretado, incerteza esta que decorre da possibilidade de interpretações variadas, as quais se pretende uniformizar por meio do preceito interpretativo. Procura-se, pois, com essa espécie de procedimento legislativo, resolver problema de certeza e de igualdade na aplicação da lei.
Muitas vezes, porém, não obstante as leis ou dispositivos legais sejam denominados interpretativos, acabam por inovar as regras supostamente interpretadas, modificando-lhes as disposições. Isso acontece, por exemplo, quando a interpretação da lei antiga é pacífica, ou quando, existente a controvérsia, venha a nova legislação a indicar uma solução que jamais foi admitida em face do regramento pretérito.
Reiteramos, portanto, que somente quando verificar-se o escopo de elucidar os termos de dispositivo legal cujo conteúdo gere controvérsia, pode falar-se em natureza interpretativa da norma. Ainda assim, é preciso ter cuidado com a significação conferida por esse veículo, que não pode se distanciar do foco das dúvidas existentes, quer dizer, é-lhe vedado alterar entendimentos já consolidados, restringir ou ampliar direitos.
3.2. A questão da retroatividade das “leis interpretativas”
Existe forte corrente doutrinária que rejeita, terminantemente, a atribuição de caráter retroativo às leis interpretativas. Esse é o posicionamento adotado por Carlos Maximiliano[5], para quem a chamada interpretação autêntica, emanada do próprio poder que produziu o ato interpretado, pretendendo aclarar seu sentido e alcance, só se aplica aos casos futuros: não vigora desde a data do ato interpretado, visto que deve respeitar os direitos adquiridos em consequência do entendimento conferido, até então, pelo órgão aplicador (Judiciário ou Executivo). Semelhante é o posicionamento do Min. Carlos Mário da Silva Velloso[6], manifestando que:
“Nos sistemas constitucionais como o nosso, em que a regra da irretroatividade situa-se em nível constitucional e não apenas de lei ordinária, impossível falar-se em lei interpretativa. Admiti-la, seria permitir ao legislador ordinário, a pretexto de estabelecer regra de interpretação da lei, a pretexto de fornecer a interpretação autêntica da lei, fazê-la retroagir”.
Com maior razão, sendo a lei inovadora, não há que falar na produção de efeitos retroativos. No ordenamento brasileiro, em que a irretroatividade da lei em relação às situações jurídicas definitivamente constituídas assume caráter de direito e garantia individuais do Estatuto Político, a lei interpretativa há de ser limitada à sua função específica de esclarecer e suprir o que foi legislado, sem introduzir novo significado, mais oneroso para o cidadão. Lei que interpreta outra há de ser retroativa apenas se destinada a eliminar as obscuridades e ambiguidades. Não se admite, contudo, que lei falsamente interpretativa retroaja, atingindo situações consolidadas. Verificando-se a criação de qualquer espécie de obrigação, dever ou ônus, a legislação é tida por inovadora, alcançando somente os acontecimentos futuros.
Pelo que se expôs, fica evidente a circunstância de que, a despeito do disposto no art. 106, I, do Código Tributário Nacional, não basta que a lei seja expressamente interpretativa: é preciso que esta se caracterize, materialmente, como interpretativa, objetivando tão-somente esclarecer controvérsias existentes, sem que isso implique restrição a direitos e garantias constitucionais conferidos aos destinatários.
Prescreve o Código Tributário Nacional, em seu art. 168, I, que o direito de pleitear a restituição dos valores indevidamente pagos a título de tributo extingue-se com o decurso do prazo de cinco anos, contados da data da extinção do crédito tributário.
Tratando-se de tributo sujeito ao denominado lançamento de ofício, em que, nos termos do art. 142 daquele Diploma Normativo, a autoridade administrativa emite a norma individual e concreta constitutiva do crédito tributário, o liame obrigacional extingue-se com o pagamento (art. 156, I, do CTN), contando-se o prazo decadencial a partir desse instante.
Relativamente aos tributos sujeitos ao chamado lançamento por homologação, contudo, a disciplina legislativa originária é diversa. Ao disciplinar as modalidades extintivas do crédito tributário, o Código Tributário Nacional refere-se expressamente à exigência de que, ao lado do pagamento antecipado, tenha-se a sua homologação, nos termos do disposto no art. 150, §§ 1o e 4o. Essa é a orientação veiculada pelo art. 156, VII.
Tendo em vista a ambiguidade e vagueza inerente a todo texto, instalou-se fervorosa discussão doutrinária e jurisprudencial acerca do conteúdo semântico dos comentados dispositivos, cuja determinação é imprescindível à fixação do termo inicial do prazo de decadência para a restituição dos valores indevidamente recolhidos.
Tudo começou com o reconhecimento da inconstitucionalidade de parte do art. 10, do Decreto-lei nº 2.288/86, que instituiu o controvertido empréstimo compulsório sobre consumo de combustíveis, acarretando, em meados dos anos noventa, grande fluxo de ações pleiteando a restituição do gravame. Já naquela oportunidade, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça entendeu que a extinção do crédito tributário realiza-se somente com a ulterior homologação do pagamento[7].
Em seguida, dada a reiterada manifestação daquela Corte sobre o tema, sua posição foi se consolidando naquele sentido. Ao julgar o EREsp nº 435.835, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento em termos de que o prazo para interposição de ações que versem sobre a repetição de tributos sujeitos a “lançamento por homologação” é de cinco anos, contados da efetiva homologação, seja ela expressa ou tácita.
Não obstante estar o entendimento jurisprudencial uniformizado a respeito do tema, foi editadaa Lei Complementar nº 118/2005, que em seu art. 3o, autodenominando-se interpretativo, dispôs ocorrer a extinção do crédito tributário, no caso de tributo sujeito a “lançamento por homologação”, no instante do pagamento antecipado, e não posteriormente, com a homologação daquele, sobre o que discorreremos a seguir.
4.1. Extinção da obrigação tributária na hipótese de tributo sujeito a “lançamento por homologação”
O art. 156 do Código Tributário Nacional relaciona onze causas extintivas do crédito tributário[8]. Ao inscrever o pagamento antecipado e a homologação do lançamento no catálogo das causas extintivas[9], quis o legislador referir-se à situação daqueles tributos que não precisam do ato jurídico administrativo de lançamento, para que possa o devedor satisfazer a prestação.
Há espécies tributárias que requerem a expedição de um ato administrativo, veiculando a norma individual e concreta do lançamento. N’outras, contudo, a aplicação da regra-matriz de incidência fica a cargo do sujeito passivo, de tal modo que, ocorrido o evento no mundo físico-social, encontrará ele nos textos do direito positivo todas as informações necessárias à apuração do débito, bem como os prazos e demais condições em que a quantia apurada deva ser recolhida aos cofres públicos. Nessas circunstâncias, caberá à entidade tributante fiscalizar os atos praticados por seu administrado, controlando, dessa maneira, o fiel cumprimento das obrigações tributárias. Trata-se, aqui, de um desempenho de controle, em que o fisco, zelando na defesa de seus interesses, realiza atividades de verificação. Podendo atestar a regularidade da conduta prestacional do devedor, que observou adequadamente os ditames da lei, a Fazenda dá-se por satisfeita, exarando ato no qual declara nada ter de exigir: é o que se chama de homologação expressa de lançamento. Nada obstante, ao certificar qualquer desacordo na atividade identificadora ou apuradora exercida pelo sujeito passivo, passa a substituí-lo, lavrando ato de lançamento, e, caso venha a surpreender um ilícito, aplica, conjuntamente, as medidas sancionatórias cabíveis, compondo a peça denominada “auto de infração”.
Sempre atento à segurança das relações jurídicas, e tomando como pressuposta a diretriz segundo a qual a expectativa dos direitos e dos correlatos deveres não podem perdurar no tempo, indefinidamente, o sistema normativo brasileiro criou a figura da homologação tácita. Se o sujeito ativo não exercer suas competências administrativas, fiscalizando, concretamente, as atuosidades do devedor, durante o lapso de cinco anos, a contar da data dos eventos tributados, operar-se-á a homologação, vale dizer, toma-se por efetivada a fiscalização daqueles atos, extinguindo-se o liame obrigacional.
Quanto à figura do pagamento antecipado, é forma de pagamento, significando o cumprimento, pelo sujeito passivo, da conduta que dele se esperava. Isso poderia levar à conclusão de que com a realização do pagamento antecipado ter-se-ia o desaparecimento do direito subjetivo de que esteve investido o credor, desfazendo-se o crédito e, correlativamente, o débito, extinguindo a obrigação. Mas, precisamente aqui, ingressa um dado que é peculiar ao instituto, tal qual o prescreve o direito tributário brasileiro: ainda que o factum do pagamento tenha efeitos extintivos, requer a legislação aplicável que ele se conjugue ao ato homologatório a ser realizado (comissiva ou omissivamente) pela Administração Pública. Só assim dar-se-á por dissolvido o vínculo, diferentemente do que sucede nos casos de pagamento de dívida tributária apurada por “lançamento de ofício”, em que a conduta prestacional do devedor tem o condão de pôr fim, desde logo, à obrigação tributária.
4.2. O instituto da decadência no direito tributário brasileiro e a caducidade do direito à restituição de tributo pago indevidamente
O Código Tributário Nacional trata da espécie no art. 173, prescrevendo que:
“O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados:
I – do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado;
II – da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado”.
O efeito extintivo previsto é o do desaparecimento do direito da Fazenda, consistente em exercer sua competência administrativa para constituir o crédito tributário. Reconhecido o fato da decadência, sua eficácia jurídica será a de fulminar a possibilidade de a autoridade administrativa competente realizar o ato jurídico-administrativo do lançamento. Sabemos que, sem efetuá-lo, não se configura o fato jurídico e, por via de consequência, também não se instaura a obrigação tributária. É fácil concluir que, nesse caso, a decadência não extingue a relação jurídica tributária, mas tão somente a competência para que os agentes do Poder Tributante celebrem o ato de lançamento. A caducidade será extintiva do vínculo apenas nas circunstâncias em que tiver sido alegada pelo interessado e reconhecida pelo órgão credenciado pelo sistema, depois de ter nascido a obrigação tributária. Aqui, sim, o efeito será terminativo da relação. Em ambos os casos, porém, trata-se mesmo é do direito de a Fazenda Pública editar a norma individual e concreta do lançamento.
Outra hipótese de fato decadencial está no desaparecimento do direito de o particular pedir a devolução do tributo pago indevidamente. Essa prerrogativa há de ser exercida num lapso que tem, como termo inicial, a data da extinção do débito e, como termo final, o marco de 5 (cinco) anos. É bem verdade que a contagem desse período de tempo se depara com a dificuldade interpretativa da locução “extinção do crédito pelo pagamento”, uma vez que o Código Tributário Nacional veicula duas modalidades de pagamento: (i) uma, que podemos chamar de puro e simples; e (ii) outra, que aquele próprio Diploma denomina pagamento antecipado.
Havendo ato jurídico-administrativo de lançamento, com a apuração, pelo Fisco, da importância devida a título de tributo, o recolhimento do valor correspondente configura a hipótese de “pagamento puro e simples”, dando-se por extinto o crédito (ou o débito, que é a mesma coisa), no momento mesmo de sua realização, vale dizer, no átimo em que o recolhimento for efetuado. Se, todavia, a produção da norma individual e concreta, que apura em linguagem o quantum devido como tributo, couber ao contribuinte, competindo-lhe também o “pagamento antecipado” da dívida, o que sucede com os impostos sujeitos ao chamado “lançamento por homologação”, o Código Tributário Nacional, por disposição expressa (art. 156, VII), determina que a extinção somente acontecerá após a homologação do pagamento antecipado.
No subsolo da disciplina normativa está a preocupação do legislador em assegurar, por parte do Estado-administração, o controle do procedimento de liquidação do gravame. Partindo a iniciativa de seus agentes, o pagamento “puro e simples” terá, sem outros desdobramentos, a virtude de extinguir o crédito tributário. Quando, porém, a atividade de levantamento do montante devido ficar a cargo do sujeito passivo, sem passar pelos olhos do Poder Público, o pagamento antecipado dependerá de confirmação, mediante ato homologatório, expresso ou tácito, exercido por representantes da Fazenda.
4.3. Prazo para o exercício do direito à repetição do indébito tributário perante a Administração Pública
Fixa o Código Tributário Nacional, no art. 168 e em seus dois incisos, o intervalo de tempo em que se pode postular, perante a Administração Pública, a devolução do pagamento indevido.
Quer significar que o contribuinte terá 5 (cinco) anos para exercitar o direito de pedir restituição, a partir do instante em que se der a extinção do crédito tributário (inciso I) ou no átimo em que se tornar definitiva a decisão administrativa ou transitar em julgado a decisão judicial que tenha reformado, anulado, revogado ou rescindido a decisão condenatória (inciso II). Por outro lado, denegada a restituição em boa hora reclamada, o contribuinte terá 2 (dois) anos para deduzir sua pretensão em Juízo, com o ingresso da competente ação anulatória da decisão administrativa que inaceitou o pedido. Prazo de decadência o primeiro, em que vemos desaparecer o direito à reivindicação na esfera administrativa; tempo de prescrição o segundo, com o perecimento do direito à ação judicial.
Salta à evidência que o cerne da questão interpretativa repousa na frase da data da extinção do crédito tributário, empregada no inciso I, do art. 168. Dependendo da orientação de sentido que outorgarmos a essa frase, haverá contagens diversas, deslocando-se o termo final que define o momento do fato extintivo da caducidade. E as proporções semânticas dessa frase adquirem especial interesse quando se tratar de impostos submetidos ao chamado “lançamento por homologação”, que pressupõe, como tive a oportunidade de acentuar, o “pagamento antecipado”, sem prévio exame, pela Fazenda Pública, de sua adequada aderência aos textos do direito positivo.
Volto a frisar que o entendimento mais forte e substancioso em termos de sustentação no direito brasileiro, já pacificado pela Primeira Seção do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, aponta para a interpretação que privilegia a fórmula redacional do art. 156, VII do Código Tributário Nacional, que prescreve a extinção do crédito tributário pelo “pagamento antecipado e a homologação do lançamento nos termos do disposto no art. 150 e seus parágrafos 1° e 4°”.
Isso quer significar que, havendo pagamento antecipado, a extinção do crédito fica diferida para o instante em que a homologação, expressa ou tácita, ocorrer. Desse marco de tempo, haverá de ser contado o prazo de 5 (cinco) anos para que se dê o fato jurídico decadencial. Dito por outros torneios, tal intervalo foi tido como apropriado para que o contribuinte, que pagara importâncias indevidas, ajuste suas contas com o Fisco, obtendo de retorno os valores excedentes. Do contrário, restaria caracterizado o enriquecimento ilícito do Poder Público. E sabemos que tal ajuste implica remexer os elementos e registros escriturais, tanto do Estado-Administração, que devolve, quanto do sujeito passivo que assiste ao reingresso, na sua contabilidade, daquelas quantias que saíram indevidamente de seus cofres.
Importa registrar que, além do fato de o art. 3º da Lei Complementar nº 118/2005 dispor que o comando é ali veiculado “para efeito de interpretação”, o art. 4º faz expressa referência ao art. 106, I, do Código Tributário Nacional. Com tal determinação, objetiva que o disposto no art. 3o retroaja, sendo aplicado a fatos passados. Todavia, o Superior Tribunal de Justiça possui posicionamento consolidado a respeito do assunto. Em razão disso, não se pode tomar o preceito do art. 3o como se fosse mera regra interpretativa.
Esse o motivo pelo qual, por ocasião do julgamento do EREsp nº 327.043-DF, o Relator Ministro João Otávio de Noronha proferiu voto contrário à aplicação retroativa do art. 3º da Lei Complementar nº 118/2005. Segundo ele, a tese dos “cinco mais cinco”, que considera a homologação como elemento imprescindível à extinção dos créditos tributários a ela sujeitos, está pacificada pelo STJ há quinze anos. Não há que falar, por conseguinte, em lei interpretativa ou em exegese autêntica. O que se desejou com o novo comando foi alterar situação estabilizada, favorável ao contribuinte, desconstituindo-se tudo o que foi concretizado no passado. Aceitar essa espécie de determinação significaria dar um cheque em branco ao Legislativo, para que este, discordando da interpretação realizada pelo Judiciário, possa modificá-la.
É certo que o legislador qualificou o art. 3º da Lei Complementar nº 118/2005 como norma interpretativa, para fins de atribuir-lhe eficácia retroativa, nos termos prescritos pelo art. 106, I, do Código Tributário Nacional. Concluiu a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, porém, que não se fazia presente uma situação de incerteza jurídica, susceptível de ser regulada por norma interpretativa. À época da publicação daquela Lei Complementar, a exegese dos arts. 168, I e 150, § 4º, do CTN estava sedimentada no Superior Tribunal de Justiça, órgão encarregado pela Constituição de cuidar da uniformização da interpretação de lei federal. Em vista disso, como no sistema normativo não havia dúvida sobre a aplicação dos citados dispositivos do Código Tributário Nacional, inexistia fundamento jurídico para que se editasse uma lei supostamente interpretativa. Independentemente do nome que lhe fosse atribuído, qualquer disposição legal objetivando disciplinar o assunto representaria verdadeira inovação.
O fato de, em algum momento, ter havido dúvidas sobre a interpretação dos arts. 168, I e 150, § 4º, do CTN, não autoriza a retroatividade do art. 3º da Lei Complementar nº 118/2005. Se ao tempo da edição do Código Tributário Nacional existia certo debate sobre a contagem do prazo para repetição do indébito nos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, o problema foi solucionado pela jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 42.720. Logo, como havia entendimento consolidado sobre o assunto, não estava presente a incerteza jurídica, imprescindível para a edição da chamada “lei interpretativa”.
Desse modo, o Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que o art. 3º da Lei Complementar nº 118/2005 veiculou disciplina inovadora do ordenamento, devendo ter eficácia prospectiva, com observância ao termo inicial de vigência fixado no art. 4º daquele Diploma. Sua aplicabilidade está restrita, portanto, às ações propostas após 120 dias da publicação da Lei Complementar.
Nota-se que, desde 27/04/2005, quando do julgamento do EREsp nº 327.043-DF, o STJ pacificou o entendimento de manter a tese dos “cinco mais cinco” para os pleitos de restituição efetivados até 09/06/2005 (data do início da vigência da Lei Complementar nº 118/05). Para as ações propostas até esse instante, o prazo de cinco anos para pleitear a restituição do indébito tributário, nos tributos sujeitos a lançamento por homologação, teria início somente no átimo da homologação, a qual, sendo tácita, opera-se cinco anos contados do fato jurídico tributário.
Necessário se faz registrar também que, tendo em vista a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no REsp nº 860.251/SE, a Fazenda Nacional interpôs Recurso Extraordinário, alegando que a decisão de afastamento da segunda parte do art. 4º da Lei Complementar nº 118/2005 apenas poderia ter sido exarada pela Corte Especial, com observância ao procedimento disposto no art. 97 da Constituição da República, nos termos do qual “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.
Diante de tal argumento, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 544.246/SE[10], decidiu devolver a matéria à apreciação do Superior Tribunal de Justiça, a fim de que se observasse a regra do art. 97 do Texto Maior.
Reexaminando o assunto nos autos do AI nos EREsp nº 644.736/PE, o Superior Tribunal de Justiça reafirmou, de modo inequívoco, sua posição, declarando a inconstitucionalidade da segunda parte do art. 4º da Lei Complementar nº 118/05, que prescrevia a aplicação retroativa do art. 3º desse mesmo Diploma. Além disso, a Corte Especial houve por bem apreciar o tema da irretroatividade das leis em toda sua amplitude e, ao fazê-lo, consignou que o referido dispositivo legal tem aplicabilidade apenas aos fatos que vierem a ocorrer depois de sua entrada em vigor. Isso significa que somente os novos “fatos desencadeadores do direito de repetição do indébito tributário” é que estão sujeitos à disciplina normativa veiculada pelo art. 3º da Lei Complementar nº 118/2005.
Sedimentado está, portanto, o entendimento de que a aplicação retroativa do referido art. 3º ofende o princípio constitucional da autonomia e independência dos poderes, bem como o da garantia do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, como consignado em decisões de lavra do Ministro Teori Albino Zavascki:
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. LEI INTERPRETATIVA. PRAZO DE PRESCRIÇÃO PARA A REPETIÇÃO DE INDÉBITO, NOS TRIBUTOS SUJEITOS A LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. LC 118/2005: NATUREZA MODIFICATIVA (E NÃO SIMPLESMENTE INTERPRETATIVA) DO SEU ARTIGO 3º. INCONSTITUCIONALIDADE DO SEU ART. 4º, NA PARTE QUE DETERMINA A APLICAÇÃO RETROATIVA.1. Sobre o tema relacionado com a prescrição da ação de repetição de indébito tributário, a jurisprudência do STJ (1ª Seção) é no sentido de que, em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o prazo de cinco anos, previsto no art. 168 do CTN, tem início, não na data do recolhimento do tributo indevido, e sim nadata da homologação – expressa ou tácita – do lançamento. Segundo entende o Tribunal, para que o crédito se considere extinto, não basta o pagamento: é indispensável a homologação do lançamento, hipótese de extinção albergada pelo art. 156, VII, do CTN. Assim, somente a partir dessa homologação é que teria início o prazo previsto no art. 168, I. E, não havendo homologação expressa, o prazo para a repetição do indébito acaba sendo, na verdade, de dez anos a contar do fato gerador.2. Esse entendimento, embora não tenha a adesão uniforme da doutrina e nem de todos os juízes, é o que legitimamente define o conteúdo e o sentido das normas que disciplinam a matéria, já que se trata do entendimento emanado do órgão do Poder Judiciário que tem a atribuição constitucional de interpretá-las.3. O art. 3º da LC 118/2005, a pretexto de interpretar esses mesmos enunciados, conferiu-lhes, na verdade, um sentido e um alcance diferente daquele dado pelo Judiciário. Ainda que defensável a ‘interpretação’ dada, não há como negar que a Lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições interpretadas um dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ, intérprete e guardião da legislação federal.4. Assim, tratando-se de preceito normativo modificativo, e não simplesmente interpretativo, o art. 3º da LC 118/2005 só pode ter eficácia prospectiva, incidindo apenas sobre situações que venham a ocorrer a partir da sua vigência.5. O artigo 4º, segunda parte, da LC 118/2005, que determina a aplicação retroativa do seu art. 3º, para alcançar inclusive fatos passados, ofende o princípio constitucional da autonomia e independência dos poderes (CF, art. 2º) e o da garantia do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI).6. Argüição de inconstitucionalidade acolhida.[11]
PROCESSUAL CIVIL. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADA. TRIBUTÁRIO. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. TRIBUTO SUJEITO A LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. PRESCRIÇÃO. ORIENTAÇÃO FIRMADA PELA 1ª SEÇÃO DO STJ, NA APRECIAÇÃO DO ERESP 435.835/SC. LC 118/2005: NATUREZA MODIFICATIVA (E NÃO SIMPLESMENTE INTERPRETATIVA) DO SEU ARTIGO 3º. INCONSTITUCIONALIDADE DO SEU ART. 4º, NA PARTE QUE DETERMINA A APLICAÇÃO RETROATIVA. ENTENDIMENTO CONSIGNADO NO VOTO DO ERESP 327.043/DF.
1. A divergência jurisprudencial ensejadora do conhecimento do recurso especial pela alínea c deve ser devidamente demonstrada, conforme as exigências dos arts. 541, parágrafo único, do CPC e 255do RISTJ. Não atende a tais requisitos a mera transcrição de ementas, sem o cotejo analítico entre os acórdãos recorrido e paradigma.2. A 1ª Seção do STJ, no julgamento do ERESP 435.835/SC, Rel. p/ o acórdão Min. José Delgado, sessão de 24.03.2004, consagrou o entendimento segundo o qual o prazo prescricional para pleitear a restituição de tributos sujeitos a lançamento por homologação é de cinco anos, contados da data da homologação do lançamento, que, sefor tácita, ocorre após cinco anos da realização do fato gerador — sendo irrelevante, para fins de cômputo do prazo prescricional, a causa do indébito. Adota-se o entendimento firmado pela Seção, com ressalva do ponto de vista pessoal, no sentido da subordinação do termo a quo do prazo ao universal princípio da actio nata (voto-vista proferido nos autos do ERESP 423.994/SC, 1ª Seção, Min. Peçanha Martins, sessão de 08.10.2003).3. O art. 3º da LC 118/2005, a pretexto de interpretar os arts. 150, § 1º, 160, I, do CTN, conferiu-lhes, na verdade, um sentido e um alcance diferente daquele dado pelo Judiciário. Ainda que defensável a “interpretação” dada, não há como negar que a Lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições interpretadas um dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ, intérprete e guardião da legislação federal. Portanto, o art. 3º da LC 118/2005 só pode ter eficácia prospectiva, incidindo apenas sobre situações que venham a ocorrer a partir da sua vigência.4. O artigo 4º, segunda parte, da LC 118/2005, que determina a aplicação retroativa do seu art. 3º, para alcançar inclusive fatos passados, ofende o princípio constitucional da autonomia e independência dos poderes (CF, art. 2º) e o da garantia do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI). Todavia, no julgamento do ERESP 327.043/DF, a 1ª Seção entendeu que o dispositivo é aplicável às ações propostas a partir da data da sua vigência, com o que ficava dispensada a declaração de sua inconstitucionalidade. Ressalva, no particular, do ponto de vista pessoal do relator, no sentido de que cumpre ao órgão fracionário do STJ suscitar o incidente de inconstitucionalidade perante a Corte Especial, nos termos do art. 97 da CF.5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, desprovido.[12]
Consolidou-se, assim, o entendimento de que o art. 3º da Lei Complementar nº 118/2005 não configura norma de caráter interpretativo. Trata-se de regra que altera a sistemática vigente, inovando o ordenamento. Em vista disso, tem-se por inadmissível sua aplicação a fatos passados. Aos recolhimentos indevidos de tributos efetuados antes do início da vigência dessa Lei aplica-se o prazo de cinco anos contados da extinção da obrigação tributária, a qual, tratando-se de tributo sujeito a lançamento por homologação, opera-se cinco anos após o fato jurídico tributário, instante em que se verifica a homologação tácita.
Vale lembrar que o ideal maior do direito é a segurança jurídica, sobre princípio que se irradia por todo o ordenamento e tem sua concretização viabilizada por meio de outros princípios, tal como o da irretroatividade das leis. Com ela não se compatibiliza dispositivo que, além de determinar ao Judiciário que este modifique posicionamento pacificado, pretende ser aplicado retroativamente.
A chamada “lei interpretativa”, referida no art. 106, I, do Código Tributário Nacional, só tem cabimento quando destinada a esclarecer dúvidas suscitadas em razão da vagueza ou polissemia dos vocábulos jurídicos. Tratando-se de legislação existente há quase quarenta anos e cujo sentido já foi pacificado pelos Tribunais pátrios, inadmissível qualquer pretensão legislativa concernente à fixação de seu conteúdo: (i) caso veicule significação semelhante à firmada judicialmente, a norma será inútil; (ii) se, por outro lado, determinar adoção de posicionamento diverso, implicará interferência na tarefa interpretativa do Judiciário, maculando o primado fundamental da separação dos poderes.
Ao dispor que o crédito tributário se extingue com o pagamento antecipado, sendo prescindível o ato homologatório, o art. 3o da Lei Complementar nº 118/2005 está a veicular comando oposto àquele consolidado pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, implicando verdadeira inovação no ordenamento.
Nessa linha de raciocínio, diante de norma que se autodenomine interpretativa, mas introduza modificações no regramento das condutas intersubjetivas, esta deve ser compreendida como regra inovadora que é. Pode ser considerada válida e subsistir na ordem positiva tão-somente se irradiar efeitos para o futuro, sujeitando-se ao princípio da irretroatividade das leis.
Além disso, os sobre princípios da segurança jurídica e da certeza do direito exigem, para sua implantação, que as alterações legislativas tenham seus efeitos desencadeados apenas em relação aos fatos ocorridos em momento posterior à sua vigência.
Por conseguinte, os fatos praticados com fundamento na interpretação conferida pelo Superior Tribunal de Justiça regem-se pela legislação em vigor à época, nos termos da qual o crédito tributário extingue-se com a homologação do pagamento antecipado, sendo esse o termo inicial do prazo de decadência para o pedido de restituição do indébito. Apenas os “fatos desencadeadores do direito de repetição do indébito tributário” que sejam praticados após a entrada em vigor da Lei Complementar nº 118/2005 podem ser regulados pela nova disciplina ali veiculada.
GOMES, Nuno Sá. Manual de direito fiscal, v. II, Lisboa: Rei dos Livros, 1997.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 9a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1979.
VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Irretroatividade da lei tributária – Irretroatividade e anterioridade – Imposto de renda e empréstimo compulsório. In:Revista de Direito Tributário nº 45, p. 85.
VILANOVA, Lourival.“Norma jurídica – proposição jurídica (significação semiótica).” Revista de Direito Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 61: 12-33, 1982.
[1]Artigo publicado em“Estudos de direito processual e tributário em homenagem ao Ministro Teori Zavascki”.Belo Horizonte: D’Plácido, 2021.
[2]Professor Titular e Emérito da USP e da PUC-SP. Membro titular da Academia Brasileira de Filosofia.
[3] VILANOVA, Lourival. “Norma jurídica – proposição jurídica (significação semiótica).” Revista de Direito Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 61: 12-33, 1982.
[4]GOMES, Nuno Sá. Manual de direito fiscal, v. II, Lisboa: Rei dos Livros, 1997, p. 333.
[5]MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 9a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 87.
[6]VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Irretroatividade da lei tributária – Irretroatividade e anterioridade – Imposto de renda e empréstimo compulsório. In:Revista de Direito Tributário nº 45, p. 85.
[7]TRIBUTÁRIO – EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO – CONSUMO DE COMBUSTÍVEL – DECADÊNCIA – PRESCRIÇÃO – INOCORRÊNCIA.O tributo arrecadado a título de empréstimo compulsório sobre o consumo de combustíveis é daqueles sujeitos a lançamento por homologação. Em não havendo tal homologação, faz-se impossível cogitar em extinção do crédito tributário.A falta de homologação, a decadência do direito de repetir o indébito tributário somente ocorre, decorridos cinco anos, desde a ocorrência do fato gerador, acrescidos de outros cinco anos, contados do termo final do prazo deferido ao Fisco, para apuração do tributo devido. (Embargos de divergência em REsp nº 42.720-5/RS, DJU 17.04.95).
[8]O crédito tributário é apenas um dos aspectos da relação jurídica obrigacional, mas sem ele inexiste o vínculo. Desaparecido o crédito, decompõe-se a obrigação tributária.
[9] Vale notar que tanto o surgimento quanto as modificações por que passam durante sua existência, e assim também a extinção das obrigações tributárias, hão de ocorrer nos precisos termos da lei. Nesse terreno, o princípio da estrita legalidade impera em toda a extensão e a ele se ajunta, em vários momentos, o postulado da indisponibilidade dos bens públicos.
[10] Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 15.5.2007.
[11] STJ, Corte Especial, AI nos EREsp644736/PE, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 06/06/2007, DJ 27/08/2007 – (grifei).
[12] STJ, 1ª T., REsp nº 836.654, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ 20/06/2006 (destaquei).