Marília Rodrigues Alves Carminatti
Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Professora e Advogada.
O presente estudo visa estabelecer um panorama acerca da tributação incidente nos negócios jurídicos que envolvam o fornecimento conjunto de hardware e software. Para tanto, será utilizado o método hermenêutico-analítico, partindo da análise das características contratuais (contratos mistos) e de julgados do Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) de São Paulo sobre o assunto, para identificar possíveis critérios de resolução do conflito de competência entre Estados e Municípios. A inexistência de lei complementar para dirimir referido conflito de competência e a ausência de entendimento firmado pelo poder judiciário sobre o assunto potencializam a insegurança jurídica existente. Nesse cenário, iremos propor critério para solução desse conflito (diferente dos propostos pelo TIT), que diz respeito à característica essencial do contrato analisado, a qual é ditada pelo software nos contratos de agricultura de precisão objeto deste estudo, assim como em diversos outros contratos celebrados atualmente.
Palavras-chave: Software – Hardware – Contrato Misto – Tributação
The present study aims to establish an overview of the taxation applicable to legal transactions that involve the joint supply of hardware and software. For this purpose, the hermeneutic-analytical method will be used, based on the analysis of contractual characteristics (mixed contracts) and judgments of the Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) of São Paulo on the subject, to identify possible conflict resolution criteria of jurisdiction between states and municipalities. The absence of complementary law to resolve said jurisdictional conflict and the lack of a settled understanding by the judiciary on the subject exacerbate the existing legal uncertainty. In this scenario, we will propose a criterion for resolving this conflict (different from those proposed by the TIT), which concerns the essential characteristic of the analyzed contract, which is dictated by the software in precision agriculture contracts object of this study, as well as in several other contracts currently concluded.
Keywords: Software – Hardware – Mixed Contract – Taxation
Para citar este artigo: CARMINATTI, Marília Rodrigues Alves. Tributação estadual e municipal de negócios jurídicos que envolvam hardware e software voltados à exploração de práticas agrícolas. Revista de Direito e as Novas Tecnologias. vol. 20. Ano 6. São Paulo: Ed. RT, jul./set. 2023. Disponível em: inserir link consultado. Acesso em: DD.MM.AAAA.
O objetivo do presente estudo é analisar a (im)possibilidade de segregação, para fins de incidência do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) e do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), do software e do hardware objetos de um único negócio jurídico.
Para tanto, partiremos da delimitação das características dos negócios jurídicos que serão estudados (contratos mistos, que envolvem licenciamento de uso de software e fornecimento de hardware, na modalidade compra e venda ou locação), para passarmos à análise dos critérios fixados pelo Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo para resolução do conflito de competência.
A leitura dos julgados do TIT selecionados nos leva à conclusão de que não há sistematização e uniformidade no entendimento do Tribunal. Sendo assim, os critérios propostos nesse trabalho são fruto de nossas interpretações acerca das decisões do Tribunal Administrativo.
Fixadas essas premissas, analisaremos dois programas que se inserem no contexto da agricultura de precisão, quais sejam: o Climate Field View e o Agriconnected, os quais envolvem softwares altamente desenvolvidos e hardwares de baixo valor econômico em comparação ao software.
Nesse cenário, entendendo pela impossibilidade de segregação do negócio jurídico para fins tributários, iremos propor critério de delimitação da tributação incidente diverso daqueles utilizados pelo TIT, levando em consideração as características dos contratos analisados, as quais são muito comuns nos contratos celebrados atualmente.
Em uma primeira aproximação com o problema a ser examinado neste trabalho, é preciso delimitar as características dos contratos que tenham por objeto o hardware e o software, para, em seguida, verificar a possibilidade de segregação para fins tributários.
É o que passaremos a tratar.
Negócios jurídicos realizados com software: cessão de direitos x licenciamento
Para a exploração do tema em análise, é necessário tecer algumas considerações acerca das modalidades de negócios jurídicos realizados com software, quais sejam: a cessão de direitos e os licenciamentos.
O art. 49 da Lei do Software (Lei 9.610/98 (LGL\1998\78))1 trata da cessão de direitos autorais, a qual pode ser total ou parcial, conforme a transmissão seja da totalidade dos direitos patrimoniais do autor ou de parcela desses direitos. Por sua vez, os arts. 9º, 10 e 11 da referida lei tratam das modalidades de licenciamento de software, mediante as quais o direito de exploração econômica e/ou utilização do software é concedido pelo licenciante ao licenciado.
O licenciamento subdivide-se em três categorias: (i) licença para comercialização; (ii) licença para desenvolvimento; e
(iii) licença de uso.
A licença para comercialização está prevista no art. 10 da Lei do Software2 e consiste na autorização concedida pelo licenciante para que o licenciado conceda licenças de uso do software a usuários finais.
A licença para desenvolvimento, por outro lado, ocorre quando o licenciante autoriza o licenciado a realizar alterações no software original, que podem configurar customizações ou upgrades, que agreguem outras funcionalidades, e/ou derivações, de modo a criar um novo software, sujeito à celebração de novos negócios jurídicos. É importante mencionar que tanto os direitos sobre as customizações e melhoramentos realizados, quanto os direitos sobre o software derivado, pertencem, em regra, ao licenciado do contrato de licença para desenvolvimento, nos termos do art. 5º da Lei de Software3.
Por fim, a licença de uso é a modalidade contratual mais utilizada. Caracteriza-se pela autorização concedida pelo
licenciante para que o usuário utilize o software, obedecidas as condições pactuadas (art. 9º da Lei do Software4). As condições da licença de uso são muito variadas, conforme explica Maria Ângela Lopes Paulino Padilha:
“Na licença de direitos de uso pode também estar incluso serviços técnicos remunerados de manutenção para o uso e funcionamento adequados do programa; serviços de adaptações e atualizações; a possibilidade de realizar modificações no software para uso próprio; e, ainda, a licença pode ocorrer por período limitado (temporária) ou ilimitado (perpétua).”5
Estabelecido esse panorama, nota-se que os contratos de cessão de direitos e aqueles que tenham como objeto alguma das modalidades de licenciamento supracitadas se diferenciam por um característica essencial: a cessão de direitos pressupõe transferência de titularidade dos direitos patrimoniais do autor de forma exclusiva e não temporária, enquanto que o licenciamento se realiza com a autorização para que o licenciado utilize o bem imaterial, que permanece sob titularidade do licenciante, podendo ser feito de forma temporária e não exclusiva.
Contudo, os negócios jurídicos que tenham por objeto o software, muitas vezes, contemplam também o fornecimento do hardware. Por essa razão, faz-se necessário examinar os chamados “contratos mistos” para verificar se eles se enquadrariam nessa hipótese e, em seguida, averiguar a possibilidade de segregação desse contrato para fins tributários.
Os contratos mistos: software e hardware
Conforme os ensinamentos de Orlando Gomes, os contratos mistos representam subdivisão dos contratos atípicos – que não estão previstos em lei –, uma vez que resultam da fusão de elementos de contratos diversos, formando um contrato sem previsão legal. Possuem, contudo, unidade de causa: não há pluralidade de contratos, mas sim um único instrumento unitário que reúne características de diversos contratos regulados em lei.
Apesar das semelhanças, os contratos mistos não se confundem com os contratos coligados, que são aqueles que não resultam em um contrato unitário, mas sim mantêm as individualidades de cada qual e, por conseguinte, não há grandes dificuldades na determinação do direito aplicável, já que são aplicáveis as normas de cada tipo contratual. Nesse sentido, o autor afirma que:
“naqueles [contratos coligados] há combinação de contratos completos. Nestes [contratos mistos], de elementos contratuais, embora possível a fusão de um contrato completo com simples elemento de outro. Pluralidade de
contratos, num caso [contratos coligados]; unidade, no outro [contratos mistos].”6
No mesmo sentido, Paulo Nader destaca que os contratos mistos não se confundem com a união de contratos – celebração de dois contratos na mesma oportunidade –, tampouco com a coligação de contratos – celebração de dois ou mais contratos distintos, embora interdependentes. Nas palavras do autor:
“[…] acordo de vontade não enquadrável inteiramente em um determinado tipo contratual previsto em lei. Como ponto de partida, a convenção se identifica com uma espécie, mas por algumas de suas cláusulas afasta-se do figurino legal, ensejando dúvida quanto à tipicidade. […] Os contratos mistos não se confundem, por seu turno, com a união ou junção de contratos, nem com a coligação de contratos. Dá-se a união quando as partes, na mesma oportunidade, celebram dois ou mais contratos independentes entre si. ‘A’ aluga de ‘B’ uma loja e ao mesmo tempo adquire-lhe mercadorias. Tem-se, in casu, um contrato de locação e um outro, de compra e venda. Ainda que celebrados num único instrumento, trata-se de dois contratos autônomos e típicos, que seguem regras próprias. Na coligação tem-se mais de um contrato, distintos mas interdependentes. ‘A’ adquire um grupo de salas de ‘B’, construtor, sob a condição de que este assuma a administração da reforma, mediante contraprestação à parte.”7
Por outro lado, Carlos Roberto Gonçalves e Álvaro Villaça Azevedo não caracterizam os contratos mistos como contratos atípicos, por entenderem que esses contratos não configuram contratos típicos, tampouco atípicos, uma vez que reúnem as características de ambos. Nesse sentido, esclarecem os professores:
“O contrato misto resulta da combinação de um contrato típico com cláusulas criadas pela vontade dos contratantes. Deixa de ser um contrato essencialmente típico, mas não se transforma em outro totalmente atípico. A nova combinação gera uma nova espécie contratual, não prevista ou regulada em lei. Constitui, pois, contrato único ou unitário.8
[…] são aqueles que, segundo classificação já por mim proposta, reúnem, em seu corpo, dois ou mais contratos típicos, dois ou mais contratos atípicos, ou, ainda, simultaneamente, as duas categorias mencionadas. […] os contratos atípicos mistos formam uma unidade indivisível, um todo uno e complexo.”9
Em suma, independentemente da concepção adotada – de que se trata de contratos atípicos ou de que não possuem natureza bem delimitada –, o fato é que os contratos mistos são caracterizados pela dificuldade de determinação do regime jurídico aplicável.
Desse modo, concluímos que os contratos que serão analisados neste trabalho, que envolvem o fornecimento conjunto de hardware e software, podem ser tidos como contratos mistos, o que justifica a dificuldade em determinar o regime jurídico a que se submetem, inclusive no tocante à tributação.
Passa-se, então, a pontuar as demais características dos contratos que serão analisados, para fins de estudo da tributação incidente (ICMS ou ISS).
Características dos contratos a serem analisados neste trabalho
Diante dos esclarecimentos feitos nos itens anteriores, é importante delimitar as características dos contratos que serão analisados no presente artigo, realizando um recorte metodológico.
O objetivo é examinar a tributação incidente no fornecimento conjunto de hardware e software, com enfoque em programas voltados à exploração de práticas agrícolas. Diante disso, serão analisados contratos de licenciamento de uso de software, caracterizados pela concessão do direito de uso do software, sem transferência de titularidade, e de forma temporária. Ademais, os contratos estudados abrangem o fornecimento de hardware, mediante compra e venda ou locação.
Nota-se que tais contratos podem ser classificados como contratos mistos, na medida em que reúnem elementos do contrato de licenciamento de software e elementos do contrato de compra e venda ou locação de hardware, preservando a unidade contratual.
Estabelecidas essas premissas, passaremos a analisar o tratamento tributário atribuído pelo tribunal administrativo do Estado de São Paulo, no que concerne à incidência de ISS ou ICMS sobre contratos com as características apontadas nesse item.
A questão central a ser enfrentada no presente artigo diz respeito à possibilidade de segregação do hardware e do software, fornecidos conjuntamente, para fins de tributação pelo ICMS e pelo ISS.
Não há lei complementar que trate dessa possibilidade, de modo que a tributação ocorre, atualmente, sem essa segregação, o que resulta na instauração de conflito de competência entre Estados e Municípios.
Analisaremos, nesse item, o entendimento do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo (TIT) sobre o assunto, selecionando os critérios utilizados para determinação da tributação incidente.
Ressalta-se que parece não haver julgados na esfera judicial sobre o assunto, o que colabora para que a controvérsia acerca do tema persista, resultando em maior insegurança jurídica para os contribuintes.
Critérios fixados pelo Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) para identificação do tributo incidente: a impossibilidade de segregação
Da análise de julgados do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT), tomados por amostragem, depreende-se que, de maneira geral, sob a ótica do Tribunal Administrativo, não há possibilidade de segregação do hardware e do software para fins de tributação pelo ICMS e pelo ISS.
Sendo assim, de acordo com elementos do caso concreto, o TIT decide pela tributação incidente: se ISS ou ICMS. Em outras palavras, a Corte Administrativa fixou alguns critérios para identificação do tributo aplicável, os quais se relacionam à tentativa de classificação do objeto contratual como “mercadoria” ou “serviço”.
Contudo, é importante mencionar, desde já, a falta de sistematização e clareza nos critérios e soluções adotadas pelo Tribunal. Apesar disso, trataremos nesse tópico dos critérios apreendidos da leitura dos julgados selecionados, buscando realizar certa sistematização da problemática enfrentada, a qual – ressalte-se – está longe de estar pacificada.
Mas, antes de tratarmos dos critérios, é necessário realizar uma breve contextualização da controvérsia.
A classificação dos softwares em “customizado” e “de prateleira” é antiga. O Supremo Tribunal Federal (STF), por
ocasião do julgamento do RE 176.62610, decidiu que o software personalizado se sujeitaria à incidência do ISS; enquanto o hardware e o software “de prateleira”, ao ICMS.
Tal entendimento vinha sendo aplicado pelos magistrados desde então. Por conseguinte, em se tratando da venda conjunta de hardware e software “de prateleira”, não havia grande celeuma em torno da tributação incidente, uma vez que ambos, individualmente e de acordo com a jurisprudência supracitada, se submeteriam à tributação pelo ICMS. Nesse sentido, decidiu o TIT no Recurso Ordinário referente ao Auto de Infração 3.142.784-4, julgado pela 14ª Câmara:
“Trata-se de ‘software de prateleira’ (cópias múltiplas) para venda e/ou revenda por pessoa jurídica detentora de licença de comercialização, o qual é imprescindível ao funcionamento do equipamento ‘repetidor’ e fornecido juntamente com este. Desta forma, tanto o software como o hardware transacionados devem ser considerados como componentes de um único equipamento, estando sujeito a tributação normal do ICMS pelo valor total da transação comercial.”
Ocorre que, em 20.05.2021, o Supremo Tribunal Federal mudou essa antiga orientação, no julgamento conjunto das ADIs 1.945 e 5.65911, no qual sinaliza o abandono da classificação dos softwares em “de prateleira” e “customizado” e passa a considerar outros elementos para determinação da tributação incidente. Sem adentrar nos fundamentos do referido julgado, por não ser o objeto do presente estudo, é importante salientar, apenas, que o E. Tribunal adotou o entendimento de que incide ISS sobre licenciamento ou cessão de direitos de software, independentemente de ser software padronizado ou customizado de acordo com as necessidades do cliente12.
Diante desse novo contexto, o conflito de competência entre ICMS e ISS se mostra ainda mais acentuado, uma vez que ocorrerá em todos os contratos mistos que envolvam a venda conjunta de hardware e software e não apenas naqueles que envolvam o fornecimento de software “customizado” de forma conjunta ao hardware.
Observa-se que a jurisprudência do TIT/SP considera, em geral, a antiga classificação (software “de prateleira” e “customizado”) para a delimitação dos critérios determinantes da tributação aplicável (ICMS x ISS). Os julgados localizados, posteriores ao novo entendimento firmado pela Corte Suprema13, não se baseiam no posicionamento estabelecido nas ADIs 1.945 e 5.659, limitando-se a indicar os elementos que já eram utilizados pelo Tribunal Administrativo.
Nesse diapasão, trataremos dos critérios utilizados pelo TIT para dirimir o conflito de competência existente, uma vez que fornecem um norte para a resolução da controvérsia acerca da contratação conjunta de hardware e qualquer software, considerando o novo entendimento do E. STF.
É o que passaremos a abordar.
Entre os critérios utilizados pelo TIT para determinação da tributação incidente está o caráter “acessório” do software em relação ao hardware. Entendeu-se que a customização do software somente ocorreria em função do hardware, o qual teria sua utilidade reduzida caso fosse comercializado sem o software customizado. Nesses casos, a Corte Administrativa decidiu que ambos, software customizado e hardware, devem ser oferecidos à tributação pelo ICMS.
Esse foi o entendimento adotado no julgamento do Recurso Ordinário referente ao Auto de Infração 3.032.179-7, pela 14ª Turma Julgadora, ocasião em que o TIT decidiu pela incidência de ICMS na contratação de centrais telefônicas, em que o hardware é vendido de maneira conjunta ao software customizado, com base nos seguintes fundamentos: “a central telefônica é contratada já funcionando, o que pressupõe a instalação de software customizado de acordo com as necessidades do cliente, é dizer, a contração não ocorre de maneira separada, tratando-se de um único negócio jurídico; a customização do software só ocorre em função da aquisição da central telefônica; e o software seria acessório ao principal, hardware, de modo que a tributação deve se dar de acordo com as características do hardware (pelo ICMS).”
Nota-se que o Tribunal Administrativo adota como critério para resolução do conflito de competência entre ICMS e ISS a impossibilidade de segregação do hardware e do software para que se alcance a finalidade pretendida. Nesse sentido, entende-se que o software customizado seria “acessório”, voltado unicamente ao seu funcionamento e, portanto, deveria ser submetido à mesma tributação que o suporte físico que integra: o ICMS14.
Ainda, nos autos do Recurso Ordinário referente ao AI 4.030.054-7, a 4ª Câmara Julgadora fixou dois critérios necessários para incidência de ISS: (i) ser vendido de forma separada do hardware e (ii) não ser software “de prateleira”. No caso, o Tribunal Administrativo entendeu que nenhum desses critérios estava presente, concluindo que o valor do software deveria ter sido incluído na base de cálculo do ICMS, in verbis: “Se a Recorrente prova que o software é ou pode ser vendido separadamente do hardware sem demonstrar uma prestação de serviço, ou seja, um software sob encomenda, tal fato redireciona na hipótese da configuração de “software de prateleira”. Assim, a Autuada tinha a obrigação além de demonstrar que o software poderia ser distribuído separadamente do hardware, a obrigação de comprovar que o mesmo era feito sob encomenda (software house). Ambos os casos não restaram provados pela Recorrente.”
Depreende-se do julgado supracitado que a mera verificação de que o software e o hardware foram comercializados de forma conjunta já foi considerada suficiente para atrair a incidência do ICMS, atribuindo tratamento meramente “acessório” ao software comercializado e sem deixar claro se o tratamento seria diferente caso o software fosse “customizado”.
Outrossim, no julgamento do Recurso Ordinário referente ao AI 4.082.072-5, a 12ª Câmara do TIT entendeu que o software, ainda que “customizado”, deve ser incluído na base de cálculo do ICMS quando for “elemento integrante” do hardware, responsável pelo seu funcionamento. No caso em análise, tratava-se do fornecimento de sistemas de controle e automação e centros de comando, e foi aplicado o raciocínio da subtração, é dizer, a Corte entendeu que “ainda que o software seja personalizado/customizado para cada cliente, conforme o projeto de automação, o fato é que sem o software a automação não funciona, o que evidencia que o software compõe o sistema de controle e automação, devendo ser incluído na base de cálculo do ICMS […].”
No mesmo sentido, no Recurso Especial referente ao AI 4.120.709-9, a Câmara Superior do TIT entendeu que os softwares seriam “parte integrante dos equipamentos comercializados”, bem como que “[…] os equipamentos comercializados não possuiriam serventia caso não recebessem a instalação dos softwares objeto da autuação” e que “[…] os programas vendidos não serviriam para uso em computadores ou outras máquinas que não as comercializadas pela recorrente”.
Há, ainda, situações em que o TIT entende que o software seria “embarcado” ao hardware, prevendo outro critério para resolução do conflito de competência entre Estados e Municípios, do qual trataremos no próximo item.
2º critério: caracterização de software “embarcado” (essencial ou não ao funcionamento do hardware)
A caracterização dos softwares como “embarcados” leva em consideração o contrato firmado, bem como a relação estabelecida entre o software e o hardware. Nesse sentido, os softwares “embarcados” podem ser entendidos como aqueles que são licenciados de forma acoplada a um hardware, podendo ser essencial ao funcionamento desse hardware, quando são chamados softwares “residentes”, ou, então, apenas fornecer funcionalidades, de modo a tornar o hardware mais eficiente. Nesse sentido, explicam Fernanda Sá Freire Figlioulo e Maria Virgínia Fantucci Pillekamp:
“[…] há situações em que o equipamento apenas se presta à sua função com o software nele instalado – não fosse esse software, o equipamento (hardware) seria mera junção de plástico e metal. Esse software instalado é denominado ‘software residente’. Já em outros casos, o software, também instalado, não é essencial ao funcionamento do equipamento, mas apenas o aperfeiçoa ou permite funcionalidades extras a esses equipamentos. Nada impede que, nessas situações, o software seja fornecido de forma autônoma do equipamento, o que confirmaria o seu caráter de independência.”15
Diante disso, de acordo com as autoras, as operações com software “embarcado” podem ser realizadas de duas formas: (i) na hipótese do software chamado “residente”, essencial ao funcionamento do hardware e à sua caracterização como equipamento, há apenas um negócio jurídico; e (ii) na hipótese do software não “residente”, é dizer, não essencial ao funcionamento do hardware, há a realização de dois negócios jurídicos, fruto de duas manifestações de vontade autônomas, já que não é possível afirmar que o software é agregado ao hardware, ainda que a venda ocorra com o software previamente instalado16.
Sendo assim, as autoras defendem que na segunda hipótese – software não essencial ao funcionamento do hardware – deve haver a incidência do ISS sobre o software e do ICMS sobre o hardware, uma vez que o software é licenciado enquanto o hardware é submetido à transferência de titularidade. Por outro lado, na primeira situação – software essencial ao funcionamento do hardware – deve haver a incidência do ICMS sobre todo o valor, pois “[…] ainda que também haja o licenciamento do software “embarcado”, prevalece a vontade de se adquirir um equipamento, ao que incide o ICMS.”17.
As decisões do TIT, no entanto, não são uniformes na caracterização dos softwares “embarcados”. Alguns julgados consideram como software “embarcado” aquele que, além de ser negociado de forma acoplada ao hardware, seja essencial ao seu funcionamento (coincidindo com o chamado software “residente”). Por outro lado, alguns julgados adotam o entendimento de que o software é “embarcado” quando é negociado juntamente ao hardware, sem adentrar no mérito de ser essencial ou não ao seu funcionamento.
Nesse sentido, no julgamento do Recurso Especial referente ao Auto de Infração 3.032.179-7 mencionado no item anterior (pela manutenção da autuação de ICMS sobre o fornecimento de software relativo ao PABX de centrais telefônicas), o TIT adotou o entendimento de que o software é “embarcado” por ser fornecido juntamente ao hardware e por ser condição para o funcionamento do equipamento na forma como contratada a aquisição, concluindo pela impossibilidade de segregá-los:
“[…] para se bipartir uma única operação mercantil, em uma parte tributável pelo ICMS e outra parte tributável pelo ISS, necessariamente teremos que ter o respaldo do ordenamento jurídico em sede de lei complementar. E como já dissemos, a Lei complementar 116/03 traz as situações expressas em que isso pode ocorrer: partes e peças nos serviços de conserto, manutenção e congêneres (item 14.01) e de recondicionamento de motores (item 14.03); mercadorias produzidas por empresa de construção civil ou de reparos fora do canteiro de obras (item 7.01 e 7.03); e fornecimento de refeições e bebidas pelas empresas de bufê (item 17.11). Não há possibilidade de se separar do valor final da mercadoria produzida custos relativos a etapas do desenvolvimento do produto, ainda que se trate de sofisticados programas de software que nele serão inseridos, e nem valores cobrados a título de montagem e instalação quanto efetuados pelo próprio vendedor da mercadoria. Não há tal previsão em nosso ordenamento jurídico; se mercadorias forem fornecidas com serviços não constantes da Lista, estaremos no campo do ICMS. […] empresa contratada para elaborar software sob encomenda que possa ampliar, melhorar ou implantar novas potencialidades em equipamento do tomador do serviço, paga ISS; MAS empresa que vende equipamento dotado de software que lhe confere inúmeras possibilidades de utilização, paga ICMS. […] A customização de software tributável pelo ISS prescinde do fornecimento de equipamentos; trata-se de relação negocial específica onde se contrata um serviço de elaboração de programas e aplicativos de computador e não um valor que se separa numa aquisição de equipamento dotado de software, por mais sofisticado que seja. […] não há dúvida de que o software é de alta sofisticação e de que exige muitas horas de trabalho, porém, ela mesmo diz [a recorrente] que ele “é único e customizado para cada central”, ou seja, é fornecido com a central e, como ela mesmo diz, “para que possa atingir as soluções demandadas”. Não vejo dúvida de que estamos falando em software embarcado no produto.”18. (grifou-se).
Para tanto, o julgador diferencia o software “embarcado” do software “customizado”, caracterizando este último como aquele em que não há o fornecimento de equipamento, mas mera prestação de serviço de desenvolvimento de aplicativos a serem utilizados em equipamento do tomador de serviço (nota-se é feita confusão entre a atividade de desenvolvimento e a atividade de licenciamento de software).
Ademais, no julgamento do Recurso Ordinário referente ao Auto de Infração 3.151.078-4 (que também tratava sobre software que fornece funções adicionais a sistema de PABX de centrais telefônicas), a 2ª Câmara do TIT entendeu que tanto o software “básico” como o software que fornece as funções adicionais relacionadas ao PABX, deveriam integrar a base de cálculo do ICMS. No voto vencedor é feita a diferenciação entre o software “embarcado”, caracterizando-o como aquele que “[…] atenda as suas [do cliente] mínimas necessidades”, e os “outros softwares que compõem a mesma plataforma”. Não obstante, a inclusão de ambos os softwares na base de cálculo do ICMS é justificada mediante a consideração de que seria inconcebível a utilização do hardware sem esses softwares, de forma contraditória à classificação adotada e tornando-a sem utilidade.
O relator do recurso supracitado, que proferiu voto vencido, adotou fundamentação semelhante a utilizada no voto vencedor, pois considerou que o software que fornece funções adicionais ao sistema de PABX não configura software “embarcado”, sob o fundamento de que “[…] não guardam relação direta com a função primordial da central telefônica e como prova disso, se realizada a exclusão não restará comprometido o regular funcionamento do aparelho.”. Na ocasião, o relator consignou que os softwares “embarcados” são considerados “[…] aqueles dedicados a funcionalidade primordial do hardware a qual pertence”.
No entanto, diferentemente do voto vencedor, o voto vencido foi coerente com a premissa adotada e considerou que o software “operacional”, “residente” ou “embarcado”, que acompanhou o equipamento (hardware), foi devidamente oferecido à tributação pelo ICMS. Por outro lado, o software objeto da autuação, por ter sido desenvolvido por encomenda e personalizado para atender às necessidades específicas do cliente, posteriormente instalado nas centrais telefônicas, deveria ser tributado pelo ISS.
Nota-se que não há uniformidade entre as decisões quanto às características do software “embarcado”: algumas o consideram como sinônimo de software “residente” (fornecido juntamente com o hardware e essencial ao seu funcionamento); outras o consideram como todo software comercializado juntamente com o hardware (independentemente de ser ou não essencial ao funcionamento).
Seja qual for a caracterização adotada, o que se depreende da leitura dos julgados supracitados é que, quando se constata a existência do software “embarcado”, o Tribunal Administrativo entende que a tributação incidente deve ser o ICMS19.
Conclusões sobre os critérios utilizados para determinação da tributação incidente na comercialização conjunta de hardware e software
Diante do exposto, depreende-se da análise dos julgados do TIT selecionados, que a Corte Administrativa entende – em geral – pela impossibilidade de segregação do negócio jurídico realizado para fins de tributação pelo ISS e pelo ICMS20. Significa dizer, o hardware e o software objeto de um mesmo negócio jurídico se submetem ao mesmo tributo de acordo com a jurisprudência administrativa paulista.
Conforme visto nesse item, as decisões se utilizam de diversos parâmetros e, muitas vezes, confusões conceituais (como no caso do software “embarcado”) para resolução do conflito de competência. De qualquer forma, buscou-se aferir alguns critérios utilizados nos votos vencedores, dos quais passaremos a tratar.
O primeiro deles é o caráter acessório do software em relação ao hardware. Isso ocorreria quando a função do software é voltada ao funcionamento do hardware na forma como contratado. Nesses casos, o hardware teria sua utilidade reduzida caso não fosse integrado pelo software.
O segundo critério, por sua vez, diz respeito à caracterização dos chamados softwares “embarcados”, classificação utilizada com duas significações diferentes pelo TIT, quais sejam: (i) software embarcado enquanto aquele que é fornecido juntamente com o hardware, sendo essencial ao fornecimento das utilidades contratadas; e (ii) software embarcado enquanto aquele essencial ao funcionamento do hardware, que atenda às mínimas necessidades contratadas (coincidente com a noção de software “residente”).
Nota-se a similitude das situações anteriormente apontadas, sendo possível afirmar que o software “embarcado”, em qualquer das duas acepções utilizadas pelo TIT, é tido como “acessório” ao hardware, confundindo-se com o primeiro critério exposto.
Diante disso, conclui-se que o entendimento predominante no Tribunal Administrativo Paulista é pela incidência do ICMS nas operações que envolvem o fornecimento conjunto de hardware e software, decidindo-se pela prevalência do “fornecimento de mercadoria” e pelo caráter “acessório” do software contratado, por mais complexo e personalizado que seja.
Nesse sentido, o novo contexto da tributação dos softwares, marcado pela decisão do STF nos autos das ADIs 1.945 e 5.659 no sentido de que incide ISS sobre qualquer software (abandonando-se a classificação em “de prateleira” e “customizado”), parece não influenciar no entendimento do Tribunal de Impostos e Taxas. Isso porque, como visto, mesmo nos casos em que o negócio jurídico analisado envolvia software “customizado” – sujeito ao ISS no contexto anterior, conforme o entendimento do STF fixado no RE 176.626 –, o Tribunal Administrativo entendeu pela prevalência do fornecimento de mercadoria – hardware – e, por conseguinte, pela incidência do ICMS sobre o negócio jurídico realizado (sem possibilidade de segregação).
Ainda, mencione-se que a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo já se manifestou, nas Respostas às Consultas 17.594/19 e 24.762/22 – esta última, posterior ao julgamento do STF nas ADIs 1.945 e 5.659 –, nesse mesmo sentido de que não é possível segregar o negócio jurídico que envolva hardware e software, devendo incidir ICMS. Sob essa ótica, apenas há incidência do ISS quando o licenciamento de software ocorrer de forma separada, sem fornecimento de qualquer hardware. A Secretaria da Fazenda afirma que “na situação em que o software é necessariamente vendido em conjunto com o equipamento (hardware) e que o software é parte integrante do produto/equipamento comercializado, incide apenas ICMS sobre o valor total da operação” (Resposta à Consulta 17.596/19) e que “[…] nas situações em que o equipamento seja vendido em conjunto com um software, o software passará a ser parte integrante do equipamento comercializado, incidindo apenas o ICMS sobre o valor total da operação.” (Resposta à Consulta 24.762/22).
Por fim, é importante salientar que os critérios expostos nesses itens são fruto de nossas interpretações acerca das decisões do TIT selecionadas, não havendo clareza, tampouco sistematização e uniformidade nos julgados do Tribunal Administrativo.
É evidente, portanto, a insegurança jurídica que paira sobre a questão, diante da inexistência de lei para resolução do conflito de competência, da ausência de uniformidade nas decisões administrativas e, ainda, da ausência de posicionamento do judiciário sobre o assunto.
Conforme mencionado, analisar-se-á neste item a tributação incidente nos negócios jurídicos realizados para fornecimento de dois programas de agricultura de precisão.
É o que passaremos a tratar, apontando as funcionalidades oferecidas pelos programas e as características dos contratos realizados, para, então, examinarmos a tributação incidente, considerando a jurisprudência administrativa sobre o tema exposta no item anterior e o nosso posicionamento.
Programa Climate Field View
O contexto em que se insere o programa em pauta é o da agricultura de precisão, significa dizer, utilização da tecnologia como meio para garantir maior produtividade às práticas agrícolas. Trata-se de segmento no bojo do qual foram desenvolvidos diversos softwares21, entre eles o Climate Field View, oferecido pela empresa Monsanto do Brasil Ltda.
Tal programa oferece múltiplas funcionalidades voltadas ao desenvolvimento da agricultura de precisão, relacionadas à integração de dados agronômicos, gerenciamento de operações e otimização de resultados por meio de dados. Seguem alguns exemplos dessas funcionalidades: (i) coleta, processamento e armazenamento de dados do campo, com o aplicativo FieldView Cab; (ii) acesso ao Diagnóstico FieldView, que fornece imagens de satélite para acompanhar a evolução da lavoura e identificar áreas que precisam de ações preventivas ou corretivas com maior precisão; (iii) realização de marcações de monitoramento, mediante inserção de anotações e fotos georreferenciadas para registrar ocorrências importantes dentro de cada talhão; e (iv) acesso à previsão do tempo específica para as coordenadas da fazenda do contratante22.
Para tanto, não é exigido hardware de alto custo. Muito pelo contrário, basta um tablet, que pode ser associado ao chamado Fieldview Drive, para que seja fornecido o mapeamento em tempo real das operações. O tablet, pode ser do contratante ou comprado da empresa. Os FieldView Drives, por sua vez, são alugados aos licenciados.
O software é oferecido mediante a celebração de contrato de licença de uso, não ocorrendo a cessão do software. É realizada uma assinatura, por prazo determinado, sendo suspenso o acesso caso o pagamento da assinatura esteja em atraso, até que os valores sejam integralmente pagos. Desse modo, verifica-se não haver a transferência da tecnologia a seu usuário que somente a utiliza enquanto pagar por seu uso23.
Além do licenciamento de uso, nesse mesmo negócio jurídico é realizada a compra e venda de mercadoria (hardware: iPad), podendo, ainda, ser celebrado contrato de locação de outros equipamentos, como o chamado FieldView Drive24.
Trataremos, agora, do segundo programa que será analisado neste trabalho.
Programa Agriconnected
O segundo programa que analisaremos é o Agriconnected, o qual também se insere no contexto da agricultura de precisão. Ele fornece funcionalidades relacionadas ao controle das máquinas agrícolas, tais como informações relativas a: (i) visualização das operações em tempo real; (ii) fornecimento de mapa de calor da qualidade do serviço; (iii) velocidade, tempo e locais de parada; (iv) horas de atividade e de motor ocioso; (v) eficiência da operação em hectares por hora; (vi) área trabalhada; (vii) evolução da operação; (viii) relatórios diversos; e (ix) envio de alertas por aplicativo de mensagem25.
Tal programa processa dados que são recebidos de hardware instalado em máquinas agrícolas, denominado Agri-S. Esse hardware deve ser adquirido pelo assinante, juntamente com os acessórios necessários para sua instalação, ao custo de R$ 1.500,00 (mil e quinhentos reais), sendo necessário um hardware para cada máquina agrícola.
Além da aquisição do hardware, é necessária a assinatura do software, cujos valores variam de acordo com o plano escolhido, que depende da quantidade de máquinas agrícolas a serem conectadas à Plataforma Agriconnected e da periodicidade (trimestral ou anual)26. Trata-se, assim como no programa visto no subitem anterior, de licenciamento de uso do software.
Estabelecido esse panorama sobre os programas, passaremos a tratar da tributação incidente em cada caso.
Tributação incidente nos negócios jurídicos que envolvem o Climate Field View e o Agriconnected: posicionamento do TIT e nossa opinião
Considerando as características dos contratos analisados nos itens anteriores – contratos mistos que envolvem o licenciamento de uso de software e a transferência de hardware –, é possível afirmar que, com base no entendimento do Tribunal de Impostos e Taxas, o negócio jurídico seria tributado pelo ICMS, tendo em vista os critérios indicados no item 2 deste trabalho.
Ocorre que, deve-se considerar que os softwares licenciados nos programas de agricultura de precisão supracitados são dotados de elevada complexidade e possuem valor econômico muito mais significativo que o próprio hardware envolvido (Ipad, Fieldview Drive ou Agri-S). Sendo assim, são questionáveis os critérios adotados pelo TIT para determinação da tributação incidente.
Se considerarmos o critério da “característica essencial” (utilizado para fins de tributação federal27) chegaremos à conclusão de que a tributação prevalente deve ser aquela a que se submete o software, que é o maior responsável pelo fornecimento das utilidades contratadas e possui relevo econômico mais significante.
Nesse sentido, é possível afirmar que se há relação de “principal” e “acessório” entre software e hardware, este seria “acessório” daquele, e não o contrário como tem entendido o TIT em suas decisões.
Contudo, é importante frisar que esse critério também apresenta fragilidades e alta carga de subjetivismo, uma vez que a identificação da “característica essencial” depende muito dos valores de cada intérprete. Exemplo da subjetividade desse critério é a Resposta à Solução de Consulta 98.252/17, a qual, aplicando a Regra 3, b, do Sistema Harmonizado, para indicar a classificação tributária para fins de IPI do chamado “Kit Guitar Hero”, entendeu que o simulacro de guitarra é o artigo que confere a característica principal e de maior importância do produto, in verbis:
“qualquer interessado no produto ora em questão irá ser seduzido não pela mídia óptica, ou pelo software contido, mas pelo simulacro de guitarra que compõe o conjunto, na ideia de representar um artista de rock, como entretenimento. […] para se desfrutar do jogo em sua plenitude, o simulacro é o componente principal de tal sortido.”
Nota-se que, a depender dos valores do intérprete, outro poderia ter sido considerado o artigo “preponderante” do “Kit Guitar Hero”.
Apesar disso, as cláusulas do contrato celebrado podem indicar de forma mais clara qual é a característica essencial do negócio jurídico, apontando, por exemplo, o valor do software e o valor do hardware, bem como a essencialidade de cada um para o fornecimento da utilidade contratada. Nesse sentido, os contribuintes precisariam estar atentos aos termos dos contratos celebrados, para terem elementos que possibilitem a comprovação de que o software é responsável por fornecer a “característica essencial” do que foi contratado.
Em síntese, diante das dificuldades de segregação do negócio jurídico que envolve o licenciamento de software e o fornecimento de hardware para fins tributários, entendemos que a atividade preponderante nos programas de agricultura de precisão acima indicados é a desenvolvida pelo software e, portanto, deveriam se submeter à tributação pelo ISS, incidente sobre o licenciamento de uso de software de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal (ADIs 1.945 e 5.659).
Nota-se que o hardware assume, nos programas analisados, valor econômico e funcional menor em comparação ao valor do licenciamento de uso do software. Diante disso, fica o seguinte questionamento: seria o software acessório ao hardware, como considerado nas decisões do TIT analisadas neste trabalho?
O objeto do negócio jurídico é representado majoritariamente pelo licenciamento de uso, pois o hardware (apenas um iPad ou dispositivo a ser colocado na máquina agrícola) apresenta valor inferior.
A análise desses programas nos leva a criticar o entendimento predominante na jurisprudência administrativa do Estado de São Paulo sobre o assunto, decidindo-se pela incidência do ICMS na maioria das situações. Isso porque, ainda que se considere impossível segregar o negócio jurídico para fins de determinação da parcela que corresponde ao fornecimento da mercadoria e ao licenciamento de uso de software, econômica e funcionalmente o software é mais significante que o hardware nos contratos analisados, o que ocorre em diversos contratos celebrados nos dias atuais.
Diante disso, entendemos que o critério que deveria ser utilizado para determinação da tributação incidente é o da preponderância para fins de fornecimento da utilidade contratada. Por conseguinte, sendo os softwares do Climate Field View e do Agriconnected os principais responsáveis pela agricultura de precisão fornecida, o licenciamento de uso de software prevalece em relação ao fornecimento do hardware e, portanto, deveria ocorrer a incidência do ISS.
Apesar de reconhecermos a fragilidade e subjetividade do referido critério, é possível mitigá-las mediante a celebração de contrato que estabeleça de forma detalhada os valores envolvidos – de software e hardware – e a essencialidade de cada um para o fornecimento da utilidade objeto do negócio jurídico.
De qualquer modo, concluímos que a análise do tema pelo judiciário, preferivelmente com efeito vinculante e erga omnes, é medida que se impõe para a garantia de maior segurança jurídica e estabilidade das relações negociais que envolvam o fornecimento conjunto de software e hardware.
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de direito civil: teoria geral dos contratos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
FIGLIOULO, Fernanda Sá Freire e POLLEKAMP, Maria Virgínia Fantucci. Tributação de software “embarcado” e os conflitos de ICMS vs. ISS. In: MONTEIRO, Alexandre; FARIA, Renato; MAITTO, Ricardo (Coord.). Tributação da economia digital: desafios no Brasil, experiência internacional e novas perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2018.
GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil 1, esquematizado – parte geral: obrigações e contratos. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
NADER, Paulo. Curso de direito civil: contratos. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. v. 3. PADILHA, Maria Angela Lopes Paulino. Tributação de software. São Paulo: Noeses, 2019.
limitações: I – a transmissão total compreende todos os direitos de autor, salvo os de natureza moral e os expressamente excluídos por lei; II – somente se admitirá transmissão total e definitiva dos direitos mediante estipulação contratual escrita; III – na hipótese de não haver estipulação contratual escrita, o prazo máximo será de cinco anos; IV – a cessão será válida unicamente para o país em que se firmou o contrato, salvo estipulação em contrário; V – a cessão só se operará para modalidades de utilização já existentes à data do contrato; VI – não havendo especificações quanto à modalidade de utilização, o contrato será interpretado restritivamente, entendendo- se como limitada apenas a uma que seja aquela indispensável ao cumprimento da finalidade do contrato.
16 Ibid., p. 733.